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Terça-feira, 23 de abril de 2024
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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

05/10/2017 - 08h17

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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

05/10/2017 - 08h17

O ódio à democracia

O título do artigo de hoje remete ao livro de Jacques Rancière publicado em 2005 e lançado no Brasil em 2014 e sobre ele tentaremos dissertar, trazendo para a complexidade da democracia brasileira, que como dito em muitos momentos anteriores, anda bem longe de se tornar o que se considera como democracia plena. Dentro deste espaço opinativo a temática democracia aparece como protagonista pela quarta vez este ano, em textos em que tentamos trazer visões distintas para o conceito e para a complexidade que o cerca, assim como, para o seu uso no campo político e social.

 

O pequeno e polêmico livro de Rancière lança algumas luzes sobre os problemas da democracia nas sociedades ocidentais. Para o autor o ódio à democracia não é novo, no entanto, a potencialização da violência do ódio ao status democrático é algo contemporâneo. Já há algum tempo o governo democrático passou a ser entendido como “mau” quando privilegia os direitos da coletividade e tenta afinar igualdade, liberdade e fraternidade. Enquanto que os “bons” governos democráticos se voltam para a liberdade e direitos individuais. Trata-se do modelo de democracia liberal em que o individualismo pregado pelo mercado do “eu” iphone, imac, iphop,selfie, etc., rege não só a esfera privada, mas pública.

 

A distribuição de renda através de programas sociais vigentes nas democracias europeias há décadas, como forma de diminuir as desigualdades sociais é tratada, no Brasil, como imoral pelos membros da oligarquia, ou,pelos que, ingenuamente, com eles se identificam. Os chamados auxílios bolsas, que começaram a ser implantados no governo de Fernando Henrique Cardoso e que foram potencializados nos governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff, são considerados modos de deixar o pobre acomodado e mantê-los sobre as rédeas do poder que espera retorno em forma de voto.

 

Entretanto, os auxílios moradia, alimentação e verbas de gabinetes dos nossos deputados e senadores, cujas quantias são astronômicas e impensáveis em países muito mais ricos que o nosso pobre Brasil, não são vistos pela burguesia que se pretende esclarecida, como imorais. E o que dizer das verbas de auxílio alimentação e moradia que recebem nossos membros da magistratura brasileira e do ministério público. Em ambos os casos, no legislativo e no executivo, os salários já se colocam acima da média do povo brasileiro e com as regalias se tornam infinitamente superiores.

 

Vale lembrar que Rancière polemiza e confronta a democracia atual com a antiga e a coloca em oposição à república e ao processo representativo, pontuando os problemas nessa identificação naturalizada.

 

Em outra frente, esse autor nos alerta, por exemplo, para o fato de que “o novo discurso antidemocrático faz um retrato da democracia com traços que eram atribuídos antigamente ao totalitarismo. Esse retrato, fala o autor, passará por um discurso de desfiguração como se, tendo se tornado inútil o conceito de totalitarismo, se pudesse aproveitar seus traços que podem ser compostos e recompostos para refazer o retrato daquilo que se supunha ser o seu oposto, exatamente a democracia.

 

Aqui o alerta é claro. E, portanto, nosso cuidado vai para os discursos que vem se lançando no Brasil desde 2013 como salvadores de uma pátria, tais como discursos que pregam o fim da violência com mais violência, com tortura, com mais prisões e aumento da população carcerária. Os portadores dessas “boas novas”, cujo exemplo de maior projeção tem sido o deputado Jair Bolsonaro, pretendem se utilizar de práticas dos regimes totalitários para de forma manipulatória, enganar as mentes mais ingênuas de que a democracia precisa de violência do Estado, quando na verdade, a democracia é o seu oposto.

 

Nesse mesmo sentido, podemos analisar os discursos desse mesmo senhor quando se volta contra mulheres, negros, índios e homossexuais. Vociferando contra a arte e contra a educação esclarecedora e a prática de uma historiografia que corrija as injustiças do passado. Nesse momento que tal nos voltarmos para os princípios de uma democracia verdadeira, os já citados aqui: liberdade, igualdade e fraternidade.

 

Então até mesmo o modelo de democracia que se tem tentado implantar nesse país, com todos os defeitos, fica em situação de ataque, visto que tanto o discurso, como as práticas que divulga o deputado já citado aqui e que pretende implantar,são de ódio entre os humanos, aqui não falo de raças, porque para mim só existe uma raça, a humana. Mas ao discriminar as populações negra e indígena, o deputado mencionado, pratica a segregação que o situapróximo da ideologia pangermânica, um dos pilares do regime nazista de Hitler.

 

Nesse caminho é que Rancière também nos fala de que, uma vez que o conceito de totalitarismo caiu em desuso, a oposição entre uma “boa” democracia dos direitos humanos e das liberdades individuais à uma “má” democracia igualitária e coletivista também se tornou obsoleta. E como nos diz o autor, “ a crítica dos direitos humanos recuperou imediatamente todos os seus direitos”, pois como nos lembra Hannah Arendt, os direitos humanos são uma ilusão. Os direitos humanos como direitos do homem que não possui direitos, praticamente desaparece quando os traços totalitários invadem a esfera democrática.  E esse não é um discurso apenas do deputado que aqui situamos, mas de muitos e muitos conservadores que estão ao nosso lado, em nossas famílias e que mesmo indo à igreja e rezando pelos preceitos de Cristo ( no caso dos cristãos), ao saírem da igreja, o máximo que fazem ao próximo em condição econômica e social inferior é dar uma esmola. Não desejam que seus filhos frequentem a mesma escola que os filhos dos seus empregados. Não desejam a igualdade porque em muitos casos, isso lhes arrancaria a única forma de bondade que exercem que é a esmola, seja por uma moeda, seja por uma cesta básica, seja por uma roupa doada.

 

Para Rancière tanto as democracias do passado como do presente foram e são organizadas pelo que denomina de jogo das oligarquias e não existe, portanto, um governo plenamente democrático. “ Os governos se exercem sempre da minoria sobre a maioria. Portanto, o “poder-do-povo”  é necessariamente heterotópico à sociedade não igualitária, assim como, ao governo oligárquico. Ele é o que desvia o governo dele mesmo, desviando a sociedade dela mesmo. Portanto, é igualmente o que separa o exercício do governo da representação da sociedade”.

 

Em certo momento do livro o autor aqui mencionado pontua as características de um governo democrático pleno e o compara com as práticas da atualidade. No caso brasileiro é perceptível os desvios cada vez maiores que os nossos governos tem tomado, portanto acredito que a hora é de retomada do processo democrático, mesmo com as dificuldades, mas a partir das necessárias correções; e, com certeza, não é hora de nos desviarmos completamente do escopo democrático movidos pela sedução de um discurso de salvação que se ampara em práticas totalitárias e ditatoriais.

 

Abrir mão das liberdades individuais e coletivas em prol de algo que não se situa no escopo democrático, mas que se vende como democrático é mais complicado do que se consegue visualizar a olho nu, as expectativas de um futuro para o nosso país. Sabemos, como nos detalha Rancière que a democracia nem de longe é o regime perfeito, contudo, com certeza é bem melhor do que os totalitários e ditatoriais. 

Ana Regina Rêgo

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