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Segunda-feira, 20 de maio de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

20/08/2020 - 14h16

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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

20/08/2020 - 14h16

Para ler a história do nosso tempo


"Notre héritage n’est précéde d’aucun testament"
René Char


Tenho usado com certa frequência nos últimos dois anos, algumas metáforas dos campos da filosofia e da história para tentar nos situar no tempo histórico contemporâneo que se coloca como um continuum, mas que ainda assim é ruptura, ou melhor, é retórica disruptiva que se pretende um determinado continuumde uma tradição que, em nosso país, pensávamos de modo alienante e confortável, que havíamos ultrapassado.
 
Em síntese, as metáforas que recorrentemente utilizo são brechas, fendas e suspensão do tempo histórico que colhi em FrançoisHartog e Hannah Arendt que nos dizem dos questionamentos e das crises que levam a rompimentos entre as ordens do tempo e carregam em si, uma ordem do político e crises e confrontos entre os regimes de verdade, por um lado, enquanto por outro, apresentam os espasmos temporais entre ordens anteriores impactadas por profundas rupturas nas sociedades causadas pelos regimes totalitários do século XX e as grandes catástrofes que volta e meia atingem algum ponto do mundo, levando populações e sociedades a perder o passado, como conheciam, de vista e a não ter perspectivas de futuro. As brechas se colocam para Hartog, “como um tempo desorientado, portanto, situado entre dois abismos ou entre duas eras [...]”, ou como diz Zweig em que “ entre nosso hoje, nosso ontem e nosso anteontem, todas as pontes foram rompidas”. As brechas seriam para Arendt um “ estranho entremeio no tempo histórico, onde se toma consciência de um intervalo de tempo inteiramente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda”, portanto, trataria de um tempo histórico suspenso, que se abriria para futuro incerto, a partir de um presente situado entre abismos.
 
Essas metáforas e a complexidade que carregam no relacionamento tensionado entre os campos da filosofia e da história nos possibilitam transgredir o pensamento para observar nossas crises do tempo presente e, que  no Brasil, nos situa entre uma crise política que se perpetua há quase uma década na qual a crise da verdade se estabelece entre confrontos e tensionalidades entre evidências, experiências, valores e crenças e, uma crise sanitária que se alastra por tudo mundo e que concerne à pandemia do novo coronavírus.
 
Em ambas as crises se movimentam tradições silenciosas e que reclamam experiências de um passado não mais acionado pela crítica, mas que se faz naturalizado em relação ao retorno do campo de uma moral conservadora, e de valores construídos em narrativas de reexperiência que encontram seus pares na sociedade do presente.
 
Neste contexto, entendemos que a tradição enquanto experiência ou linha de um passado compartilhado que acolhemos, de um passado que nos afeta e que é afetado por nós, mantém conosco uma relação de co-pertença e que, portanto, pode ser acionado de modo consciente ou inconsciente e carrega em si, potência e não potência para negatividade, podendo inclusive, ser positiva, mas com a qual devemos manter um lastro de criticidade na relação e no acolhimento.
 
Esse processo de consciência e compreensão do ser em seu tempo e do ser em relação com o tempo é primordial para entender as ondas históricas que se conformam em crises e em alguns casos, em rupturas da ordem do tempo histórico, visto que como nos diz François Hartogo problema se coloca com maior dimensão quanto maior for a distância entre a experiência e a expectativa, entre o passado histórico e as perspectivas de futuro.
 
Se o afastamento da experiência coletiva passada leva a crises constantes, a consciência histórica conhecedora da influência latente da tradição nas sociedades, procura se relacionar com esta a partir de uma visualidade mais complexa com o acolhimento da crítica, como nos coloca Paul Ricoeur, procurando compreender que para além da Tradição que se coloca como autoridade do passado acionada pela crítica, as tradições e as tradicionalidades nos circundam e os efeitos desse relacionamento individual e coletivo pode se dar de modo consciente quando podemos inclusive romper com a tradição, mesmo que para isso seja necessário acolhe-la, como também,  a tradição pode atuar em nós ocasionando uma consciência por adesão acionada pelos valores e crenças e não crítica, mas ainda assim, a partir de uma latente consciência-inconsciente.
 
Em síntese, o que aqui estamos argumentando é que os atuais confrontos que se travam no campo da comunicação e das narrativas em torno da verdade, em que regimes de factualidade e evidência são confrontados com os regimes de experiência, crença e valores, estes últimos utilizados como subsídios de um mercado da desinformação potencializada que circula pelas redes sociais e aplicativos de mensagem, mas que também perpassa os meios de comunicação; são acionados pela relação  de pertencimento do presente com a tradição latente. Conservadorismos morais, regulação dos corpos, falsa moral política, são usados como temáticas agregadoras de uma retórica moralista e colocadas ao público que acolhe tais narrativas porque vão de encontro a seus valores.
 
Essa é uma relação comunicacional e social, mas é, sobretudo, histórica, como seres-históricos que somos e que afetam e são afetados pelo passado.
 
A tradição tão contestada na modernidade termina a meu ver se impondo não somente em sua face visível, mas também naquilo que vive silenciado e que irrompe quando acionado, visto que a relação de co-pertença entre as linhas que compõem a tridimensionalidade temporal ( passado, presente e futuro)  não são estáticas, logo a consciência histórica se faz necessária, por mais que a história ação seja um reposionamento em relação ao futuro, este futuro continua sendo disputado no tempo da ação em sua relação com o passado.
 
As lutas que hoje travamos no Brasil a despeito de um governo com um plano de destruição do que se construiu de processos de inclusão, democracia e justiça social nos últimos anos em todas as esferas governamentais, e que vão  da educação, saúde, cultura ao meio-ambiente, são motivadas pelo enfrentamento que fazemos não a propostas de rupturas calcadas em cima de uma inovação no modo de governar, mas ao contrário, o que há são proposições que se estruturam em cima de tradições latentes que fizeram aflorar um conservadorismo moral e religioso e uma economia neoliberal que nada tem de humanista.
 
Nossos desafios são grandes, mas a consciência histórica pode ser acionada nesses confrontos.
 

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