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Segunda-feira, 20 de maio de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

04/09/2020 - 12h44

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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

04/09/2020 - 12h44

O tempo da negação: a morte silenciada!

 


"Mas o que foi feito então da morte, se já não é o jacente no leito, doente, suando, sofrendo e rezando? Torna-se qualquer coisa de metafísico que se expressa por uma metáfora: a separação da alma e do corpo, sentida como a separação de dois esposos, ou ainda de dois amigos, queridos e antigos. O pensamento da morte está associado à ideia de ruptura do composto humano […] "  Phillipe Ariès 

Tomo de empréstimo as palavras do historiador Phillipe Ariès e as transporto para nossa contemporaneidade pandêmica, bem distinta das temporalidades observadas em sua História da Morte no Ocidente. A transgressão que faço é também contextual, mas cabível dentro das diferentes formas de vivência da morte em 2020, de um lado, pela imposição do afastamento dos vivos de seu morto, como também,  pelo preconceito alimentado, e, de outro, pela inconsciência coletiva que atinge nossa sociedade. 

Se o novo coronavírus tem imposto mutações aos rituais da morte, com cerimônias rápidas, com poucas pessoas e sem despedidas mais pessoais, ou, em muitos casos sem a realização dos ritos comuns a cada religião, por outro, o comportamento social coletivo de liquidez do qual nos fala incessantemente Baumann, passa também a atingir a morte.  Portanto, hoje dissertarei sobre a morte em nosso meio, nessas duas perspectivas. 

A representação da morte e a ligação dos vivos com a morte atravessa a história em seus diversos momentos e revela, inúmeras formas de percepção, de culto através de lugares de memória, de relacionamentos que interligam sofrimento, luto, dor e medo em alguns povos e culturas, enquanto que em outros, mantém relação com a vida do morto presente no passado, com festas, danças e comidas. 

Em diversos momentos da história a morte se manifestou e se manifesta de forma coletiva e concomitante, durante as pandemias e durante as grandes guerras. 

Na pandemia atual à família do morto não é permitido beijá-lo, acariciá-lo, como último ato de despedida. Não é permitido sequer abrir o ataúde, visto que o risco de contaminação é real. Em muitos casos, como nos enterros coletivos em valas de cemitério como ocorrido na cidade de Manaus, os familiares ficavam à distância e não lhes era permitido chegar perto do caixão. 

Por esse ângulo, há uma dupla percepção da morte que não chega a se consumar completamente, visto que não é permitido uma despedida final. Se alguns chamam de dupla morte, eu entendo, ao contrário, como morte sem percepção de morte. Thanatos filho de Nix, enquanto Deus que atravessa os rios para o inframundo, na visão dos que ficam, não teria levado seu morto, o morto permanece, em muitos casos, vivo nas redes sociais alimentadas pelos familiares.  O morto que não é completamente chorado e cujo luto não é completamente vivenciado.  O luto e a angústia tende a se perpetuar latentes e doentes pela percepção parcial da presença do ausente.
 
Como se diz, é preciso viver enquanto aqui estamos. Concordo que é preciso viver, mas também é preciso sofrer para continuar a vida em respeito aos vivos e aos mortos.

Na segunda perspectiva que proponho pensar aqui, a morte da morte surge como inconsciência e inconsequência coletiva. Dados do Ministério da Saúde, sem ministro, registram na última atualização realizada no site https://covid.saude.gov.br/ no dia 01 de setembro às 18h45, portanto dois dias antes da publicação deste artigo, que no Brasil o número de casos confirmados era de 3.950.931, enquanto que o número de mortos por COVID-19 estava na casa dos 122.586 brasileiros. Vale destacar que esse número oficial é sempre inferior ao número divulgado pelo Consórcio dos veículos de imprensa. É preciso ainda ressaltar, que em ambas as estatísticas não estão contabilizadas as subnotificações, os infectados e as mortes que ocorrem somente no ambiente privado.

Dois dias antes da publicação destes dados no site referenciado acima, imagens e vídeos das praias do Rio de Janeiro que somente se colocam como um espelho do que acontece em todo o Brasil, revelavam o comportamento do povo brasileiro diante da pandemia sanitária. Descaso com o uso de máscaras, descaso com o distanciamento social necessário para a retomada das atividades, descaso com as recomendações para evitar aglomerações, descaso com a própria vida e com a vida do outro. 
 
É certo que o isolamento social não pode perdurar para sempre, mas é real que o vírus circula voraz entre nós, ceifando vidas em grande quantidade todos os dias há vários meses.  Entre 31 de agosto e 01 de setembro foram contaminadas oficialmente, ou seja, dados do governo, 42.659 pessoas, das quais muitas morrerão em menos de uma semana. É certo que muitos sobreviverão, mas muitos mais morrerão. 

O Brasil e o mundo, vale lembrar a festa de música eletrônica na própria Wuhan na China,  revelam um mundo sem medo da morte e mas mais do que isso, revela um mundo sem respeito pela morte, sem respeito pela dor, a morte mais do que nunca se tornou um outro a ser esquecido imediatamente. Nem mesmo o esforço visual de colocar no mapa do Brasil os 122.586 caixões dispersos por todos os estados e por milhares de cidades, teria efeito algum sobre os que necessitam vivenciar as noites nos bares sem distanciamento ou uso de máscaras. A matéria vida tão fina que o poeta cantou para o poeta morto, torna-se mais e mais frágil.

A negação da morte, inclusive, a negação do número de mortos por parte dos partidários do presidente Bolsonaro, por parte dos fundamentalistas neopentecostais, por parte dos negacionistas da ciência e da história se alastra entre os brasileiros, trabalhando pelo vírus e por sua proliferação rápida entre nós.
 
Muitos se vangloriam porque foram assintomáticos, outros porque tiveram sintomas leves, mas não pensam que podem ter transmitido a alguém que não teve a mesma sorte e que a transmissão pode ter ocorrido em qualquer lugar a qualquer momento. 

Por último, vale pensar que a negação trabalha em prol do silenciamento. Se você perdeu alguém não deixe que isso aconteça. Estamos disputando hoje uma narrativa sobre as mortes pela COVID-19 que impactarão em nosso futuro, sobretudo, no que concerne aos rumos da ciência e da história, que em si, são intermediadas pela política. Namastê!

Catraca Livre

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