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Segunda-feira, 20 de maio de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

17/09/2020 - 14h47

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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

17/09/2020 - 14h47

O dilema das redes

 

O novo documentário lançado pela Netflix nos últimos dias, O dilema das redes, que tem como diretor Jeff Orlowski, apresenta a temática da “nova” sociedade do controle a partir das grandes plataformas virtuais, considerando os modelos de negócios predatórios,  as estratégias de potencialização de visibilidades e as estratégias de manutenção da economia da atenção, a partir da criação de estímulos psicológicos em redes neurais dos usuários. Este artigo, no entanto, não é uma crítica especializada ao documentário, mas tão somente o situa no cenário que analisa e no qual nos situamos.

Do ponto de vista dos experts da comunicação e da tecnologia o documentário em si, não apresenta nenhuma novidade, afinal já estamos debatendo, denunciando e propondo modelos para regulação das gigantes virtuais há vários anos. Todavia, o documentário como um produto audiovisual de grande alcance construído a partir da interligação de narrativas de fácil acesso e compreensão, por um lado, assim como, calcadas em testemunho de profissionais que atuaram em algumas das grandes plataformas que controlam as nossas vidas nos dias atuais, proporciona ao público em geral, uma visão mais do que necessária sobre o fenômeno das redes sociais, revelando o lado obscuro dos grandes negócios virtuais, para quem não passamos de produtos. 

O documentário ao entrelaçar testemunhais dos profissionais de empresas como Facebook, Twitter e Google por exemplo, também consegue abordar vários aspectos das grandes plataformas que se consolidaram como grandes centros de controle da vida em sociedade na atualidade, em que negociam nossos dados, nossas emoções expostas em manifestações por curtidas, compartilhamentos e comentários e ainda negociam nossa produção de conteúdo. 

Um dos aspectos abordados é a interveniência das redes sociais no psicológico e na autoestima dos usuários, incluindo, o nascimento de novas atitudes e até mesmo de novas patologias. 

Em agosto de 2017, publiquei nesta coluna um artigo denominado No mundo das aparências não somos mais que escravos em que detalhava o protagonismo da imagem, em detrimento da essência pessoal e coletiva no mundo virtual. O texto a que me refiro foi ainda apresentado por mim em março de 2018 na PUC-São Paulo em uma palestra. Naquele texto eu enfatizava o encontro entre dois mundos, de um lado, a exploração que as plataformas fazem dos usuários configurando uma potencialização da sociedade do controle e, de outro, abordava a sociedade confessional que expõe tudo o que faz. O livro de rosto e os diários pessoais passaram a ser públicos, visto que postamos tudo, desde a comida no restaurante ao pijama novo da noite. Procuramos visibilidade, aceitação e cumplicidade, além de pertencimento a determinadas tribos, etc. 

Compactuamos com as plataformas ao aceitarmos as condições que nos são impostas para que possamos manter nossos perfis ( avatares virtuais de nós mesmos) ativos e dialogando com a sociedade que nos circunda, agora cada vez mais manipulada pela programação dos algoritmos, que estimulam as bolhas e as oposições, potencializando a cultura do ódio e o desentendimento político, este último, na concepção de Jacques Rancière. 

Em fevereiro de 2019 publiquei também nesta coluna o artigo Controlados, vigiados e manipulados em que abordava a genealogia do conceito de sociedade de controle a partir de Gilles Deleuze que o constrói a partir de uma distinção potencial em relação à sociedade disciplinar trabalhada anteriormente por  Michel Foucault.  O texto a que me refiro aborda as diferenças entre o que foi pensado por Deleuze e o cenário de manipulação atual, detalhando o processo de controle que transita entre o Estado e o mercado. 

No artigo, eu enfatizava a relação entre o controle e a recompensa que nos manipula e nos mantém refém das redes. Empresas e seus aplicativos, possuem todos os dados de seus consumidores, fazendo-os avaliar os serviços que utilizam e serem avaliados por suas ações de reciprocidade. Nossas ações nos dias atuais já estão tão naturalizadas que passamos a defender o controle/julgamento do outro e dos serviços ofertados em um mercado cada vez mais universal. Dos aplicativos de transporte sem regulamentação trabalhista,  onde avaliamos os motoristas a cada corrida e somos avaliados, aos aplicativos de entrega de comida em que avaliamos o alimento e a pontualidade dos restaurantes que estão ofertando seus serviços no aplicativo, passando pelos aplicativos de busca de relacionamento ou pelos sites e aplicativos que pontuam restaurantes, hotéis, pousadas, pontos turísticos de todo o mundo, ou ainda ao sites e aplicativos em podemos reservar hotéis, ou onde reservamos casas ou apartamentos de particulares para temporadas de férias, ou seja, por onde nos movemos na intersecção entre os espaços físicos e hiper-reais, somos controlados, vigiados e somos agentes do controle e do julgamento e também vigiamos a tudo e a todos. 

Em alguns espaços da web, a questão tem sido motivadora de potencialidades complicadas, por exemplo, a ferramenta do Google: Google Adsense que incentiva a monetização de sites a partir da visibilidade que os conteúdos de cada site, possa vir a ter. Essa ferramenta tem sido uma impulsionadora contumaz de práticas que levam a produção e circulação de narrativas desinformacionais propagadas em época de polarização política. Obviamente, pressupõe-se que lucrar com notícias falsas parece ser um efeito colateral da ferramenta e, portanto, não intencional em sua base.

Recentemente publiquei nesta coluna o artigo A perfeição (im)perfeita, os valores e nós: os produtos mais lucrativos do mercado em que trago para debate a tecnologização da vida em sociedade, a centralidade midiática e a internalização dos processos virtuais como inerentes à vida humana. 

Mas, voltemos ao documentário O dilema das redes, que ao meu ver, vale a pena assistir, não somente porque expõe muito do fenômeno que invade todas as sociedades e se alastra reticularmente por milhares e milhares de redes internas controladas ou não, pelos usuários, mas que de algum modo trazem retorno financeiro para as grandes plataformas.

Por outro lado, o olhar para documentário também deve ser crítico. Há uma grande parcela de participação das grandes plataformas nas ameaças que a democracia vem sofrendo, por exemplo, com a ascensão dos partidos de extrema direita em vários países do mundo, passando pela Inglaterra, Estados e Brasil, sobretudo, pela permissividade que as plataformas mantém com práticas perniciosas à sociedade, como a produção e circulação de fraudes e de fake News, mas que finalmente, vem sendo coibidas por processos judiciais e por legislações que se impõem ou estão sendo costuradas, sempre na linha limítrofe entre a necessidade de equilíbrio entre uma auto-regulação, uma co-regulação e uma regulação estatal, para que não se caia no absurdo da censura e de um controle maior ainda. Sigamos!

 

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