Facebook
  RSS
  Whatsapp
Domingo, 19 de maio de 2024
Colunas /

Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

15/10/2020 - 13h16

Compartilhe

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

15/10/2020 - 13h16

​​Sobre verdade e desinformação

A história da desinformação é bem mais antiga do que sua relação com o jornalismo, embora também tenhamos que considerar que informação/desinformação e jornalismo possuem um lastro histórico, eventualmente, potencializado em momentos de crises sociais e políticas. 

Luciano, considerado por alguns um historiador, poroutros o pai da ficção, publicou no século II o livro A história verdadeira em que aborda a questão tensional entre a verdade e a ficção consumida como verdade. Na introdução do livro ele elenca alguns historiadores que teriam contado histórias fabulosas tais como Ctésias sobre a Índia sem nunca ter pisado lá, ou ainda Homero eVirgílio que escreveram histórias fantasiosas e que eram consumidas avidamente pelo público como verdadeiras. Na introdução do livro, Luciano diz que “ não serei o único a renunciar à liberdade ficcional da qual todos vem se aproveitando. Incitado por uma vaidade rídica a deixar meu testemunho às gerações futuras mesmo sem ter vivido nada de notável, lá vou eu também. Rumo à falsidade. Falsidade, contudo, muito mais honesta que as demais. Pois, ao menos, há nela uma verdade: assumo estar mentindo. Isso mesmo. Você não encontrará pela frente uma única palavra verdadeira (e, com essa confissão, espero livrar-me de qualquer possível reprimenda. Nenhuma. Escrevo sobre fatos que nunca vi, nem vivi. De quem nem sequer ouvi falar. Sobre o que não existe, nem jamais poderia existir. Fica, em resumo, um aviso a todos os leitores: não acreditem em mim”. 


A fala de Luciano embora muito distante do que vivemos hoje em relação às matrizes científicas, jornalísticas, históricas calcadas no regime de historicidade da modernidade cuja política da verdade estava baseada no método cientificista objetivista, especificamente, comprovado por evidências; é uma fala que nos suscita ponderação e nos faz perceber que a verdade nunca foi consensual e que como ponto chave e separador entre informação e desinformação, é desde sempre um ponto complexo.

Informação e desinformação, faces de um mesmo fenômeno, desde então já disputavam o direito de falar por Aleteia.

Mas, a verdade pode ser construída por diversos caminhos e pautada em diferentes valores e crenças. E foi nesse contexto que Descartes, o patrono da Modernidade,terminou por criar um método de dedução dos pensamentos para o que seria o verdadeiro. Este método constituiria em seguir alguns princípios, como o da Evidência, o da Análise, o da Síntese, e, por fim, o princípio do Controle que tem como premissa a revisão permanente do processo de certeza, objetivando a não omissão de evidências possíveis que possam atestar o verdadeiro e contestar o não verdadeiro.

Para além do método cartesiano proposto a partir da máxima do Cogito - Penso, logo existo, ou, como afirmam alguns -  Duvido, logo existo -, Descartes que vivenciou um mundo em crise, nos deixou a dúvida como centro da construção do pensamento. Sobretudo, a dúvida que teve como raiz a inquietação sobre opiniões e valores que haviam pautado as verdades em sua vida. Este filósofo duvida de tudo sobre o que em tese não poderia haver dúvida e é duvidando que consegue chegar a uma proximidade com a verdade. O ponto que nos interessa aqui no pensamento de Descartes é a dúvida que nasce na contestação do sistema de crenças e de valores de uma dada sociedade, sobretudo, quanto confronta as possibilidades da realidade dada a partir da crença em um Deus que permeia toda sua percepção de mundo, com a projeção de uma realidade e da possibilidade de existência de um Deus do mal, que Descartes denomina de gênio maligno, cuja ação correria no sentido de enganar e manipular o pensamento do crente. Tudo o que não poderia ser duvidado passa a compor a dúvida e a solução encontrada por Descartes é a elaboração do método acima mencionado.

Os caminhos da razão cartesiana são utilizados para separar uma pretensa narrativa verdadeira de outra ficcional, ou mentirosa. Na origem portanto, das tentativas de elucidar os espaços de cada uma.

Aleteia tem assim, seu percurso enfatizado agora, não mais por determinadas pessoas com funcionalidades especificas e relacionadas à verdade, tais como Deus, o Parresiasta, o Oráculo, o Professor, o Técnico, o Profeta, o Cínico etc., como bem relaciona Foucault em A Coragem da Verdade, nem tampouco a uma instituição da antiguidade, mas a processos metodológicos como caminhos para construção de verdades que poderiam se tornar não duvidosas, desde que comprovadas as devidas evidências. 

Os métodos vão se sobrepondo e vão se articulando para trabalhar construções verdadeiras cada vez mais incontestáveis. A fala de Deus, por outro lado, é a única que não precisa de um método, visto que se pauta declaradamente no sistema de valores e crenças e já se nomeia como superior ao humano.

No entanto, nos demais campos da vida em sociedade, sobretudo, em se tratando da sociedade ocidental, o cientificismo e o positivismo vão deixar marcas profundas na construção do verdadeiro e essas marcas vão se consolidar no regime de historicidade da modernidade a partir dos métodos científicos que se espalham por  todos os espaços e que pretendem disputar poder e lugar na política de verdade das sociedades contemporâneas. 
Para além de todas as disputas em um ambiente da modernidade, vale ponderar um grande número de sociedades que estavam e estão fora do escopo da construção de uma verdade científica através de métodos.  Em muitas culturas prepondera uma verdade mística inconteste que chega pela crença em uma religiosidade que se coloca como suprema, ou, pela crença em valores compartilhados somente em determinadas comunidades através da cultura e da arte, por exemplo. Logo a construção do verdadeiro enquanto possibilidade comprobatória de um fato através de um método possível, não é e nunca foi universal. 
A nossa realidade neste início de século XXI é não somente de confronto do método, mas de descrédito da verdade. Aleteia encontra-se nua e abandonada na maioria das sociedades ocidentais em que se buscou construir a verdade como um valor supremo, em um passado recente.

Nessa conjuntura, portanto, diferentemente do que propôs Descartes, a sociedade opta pela crença cega em situações e narrativas que comprovam suas experiências relacionais e atestam seus valores pessoais e que passam a ser coletivos, não por um processo de consciência de si, muito menos através da tão necessária consciência histórica de que tanto falamos neste espaço opinativo, mas por identificação.

Os métodos tão caros para o mundo moderno, agora são contestados não por uma via crítica, mas por uma visão restrita, em que a opinião apoiada em valores e em crenças prepondera. Duas vias se colocam no momento, a mentira se estabelecendo em lugar da verdade, inclusive, no ambiente científico com os negacionistas e o reforço desesperado dos métodos de construção da verdade nas instituições e instâncias em que Aleteia acreditava reinar no  ocidente moderno. 

Por fim, na tensionalidade que em que se estrutura a disputa pela verdade e em que localizamos em polos opostos, informação e desinformação, se estabelece o desentendimento político e é neste contexto que precisamos encontrar vias para o diálogo que podeminimizar a intensidade da crise, mas também que pode negociar novos parâmetros para uma nova política da verdade, que não se paute por métodos tão positivistas, mas também que não seja somente pautada em crenças pessoais.
 

Comentários