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Sexta-feira, 10 de maio de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

22/04/2021 - 18h43

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Ana Regina Rêgo

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22/04/2021 - 18h43

Foucault e a verdade sobre a verdade

Para Foucault, as sociedades em suas temporalidades possuem regimes acordados em torno de uma “política geral” da verdade. Isso conforme o autor, significa que cada sociedade define quais discursos e narrativas são aceitáveis em seu contexto social.Diversos mecanismos e lugares de poderterminam por definir do ponto de vista histórico e da historicidade do fenômeno da verdade, estratégias que “permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como se sancionam uns e outros, as técnicas e os procedimentos  que são valorizados  para obtenção da verdade, o estatuto daqueles que tem  a função de dizer o que funciona como verdadeiro”.
           
Esse estabelecimento dos regimes de verdade temporalmente e contextualmente é esclarecedor das diferentes percepções sobre a verdade que atravessam a história da humanidade.
 
Em seu livro AOrdem do discurso, Foucault define os sistemas de exclusão e distinção que interferem no discurso, que por sua vez, já surge como um veículo para o poder.Os sistemas de exclusão estariam centrados na Interdição que revela uma regulação sobre o que, onde e como deve ser falado. Na Separação e rejeição que manifestam a relação oposta entre razão e loucura, com supremacia da razão sobre a loucura.
 
Em Foucault como em Nietzsche, a vontade de verdade está diretamente relacionada com a vontade de poder. Controlar a construção do que é ou pode ser o verdadeiro é, em si, uma estratégia de dominação, constituição e manutenção do poder, visto que carregaelementos de regulação, controle do que pode circular socialmente como premissas do que se diz e se toma por verdadeiro, uma vez que o ser humano em sociedade se move rumo ao encontro com véritas, cuja convenção social é a guia para um estado de bem viver.
 
Posteriormente, no livroA vontade de saber -História da sexualidade I, Foucault coloca em confronto vontade de verdade e vontade de saber, situando vontade de verdade como um mecanismo de exclusão tão forte quanto a oposição entre razão e loucura. Nesse momento, Foucault procura traçar uma morfologia que lhe permita um aprofundamento nos problemas da humanidade com a verdade. O ponto central seria o revelar do papel de exclusão da vontade de verdade em relação ao discurso em que se manifesta. Para tanto, se concentra ainda nas questões do poder arbitrário e dos sistemas coercitivos, que tensionam com as lutas históricas e sociais que disputam a construção da verdade.
 
Nesse contexto, Foucault tem como guia inquietações sobre os jogos que procuram nortear a verdade contra a fraude, localizando em um sistema verdade/erro convenções socialmente aceitas. Foucault procura decifrar se os jogos da vontade de verdade incluem também uma vontade de saber, que se interligariam assim, tanto à verdade quanto ao conhecimento.
 
Em outro momento, Foucault continua seu empreendimento genealógico sobre a verdade e, em A coragem de verdade apresenta uma trajetória histórica do fenômeno através dos tempos. Começa na primeira aula com a parresía enquanto modalidade de uma fala franca localizada na antiguidade, em que o parresiasta era dotado de uma forma específica do dizer-a-verdade e do dizer-a-verdade sobre si mesmo. Para em seguida, trabalhar a verdade do técnico, do filósofo, do profeta, situando-os seus lugares sociais que lhes conferiam poder de fala e audiência, assim como, formas de manifestação de suas verdades, através de seus conhecimentos específicos, aplicados temporalmente em suas sociedades, em que conquistavam respeitabilidade social.
 
Na obrade Foucault podemos perceber dois caminhos para compreensão de uma história da verdade, uma que se debruça sobre os processos de construção de um discurso que se faz passar por verdadeiro socialmente, detalhando as peculiaridades de sua historicidade em suas temporalidades. Na outra vertente, Foucault trabalha as relações da verdade com o poder que terminam por se coadunar como fenômenos sociais estruturadosà partir de tensionalidades, muitas vezes coercitivas.
 
Em suma e para Foucault, as sociedades em suas temporalidades, elevam determinadas instituições à condição de lugares de verdade, que por sua vez, possuemseus porta-vozes.
 
É preciso ainda reforçar o que foi dito acima de outro modo e consiste no fato dequevéritaspossui umaestruturação interna que regula a construção discursiva e uma externa através de redespor onde se interconecta à sociedade favorecendo as estruturas de poder.
 
O percurso de Foucault em suas genealogia e morfologia da verdade nos revelam que para além da construção da veracidade, como algo que se comprova como verdadeiro, localizamos ainda em outro polo, o encontro com os valores e com as crenças, levando a um acreditar no que se diz por verdadeiro.
 
Nesse ínterim, a fala deDeus que se pensou silenciada na modernidade e que se coloca como a única que não precisa de um método, visto que se pauta declaradamente no sistema de valores e crenças e já se nomeia como superior ao humano, logo incontestável, termina retornando com grande força nesse momento, contestando o que está posto e se colocando em oposição à ciência em diversas frentes.
 
O negacionismo histórico e científico, aliado a um processo fabril de narrativas desinformacionais que se utilizam do modelo de negócios das plataformas digitais e de suas possibilidades de fruição em redes sociais, se coadunam com a má fé, em prol delugares de construção da desinformação e de sua aceitabilidade social, acarretando na potencialização da ignorância coletiva que hoje está na base de grandes movimentos como os terraplanistas e os anti-vacinas.
 
É neste contexto que nos situamos na atualidade entre a crítica e a crise, plagiando aqui o título do livro do historiador alemão ReinhartKoselleck, visto que as críticas que temos realizado, sobretudo, a partir das ciências humanas à fetichização do método e que é, de certa forma, contributiva da crise da verdade e da credibilidade social de instituições como o jornalismo,é também alavancadora de um paradoxoem que nos situamos nos dias atuais, entre um desejo de passado nem sempre acionado por uma tradição crítica, mas que tão somente nos leve ao patamar social de credibilidade e de lugar de verdade situados em um passado, ainda assim, promissor de um status social e econômico. E um desejo de futuro, de transformação social das instituições que ora se conformam em torno de novos pactos de verdade que para além dos confrontos entre evidência e crença, possam construir uma terceira via que agregue rastros de real, para além de seus efeitos, sem necessariamente forjar o subjetivo como objetivo, o parcial como imparcial, dentre outros aspectos de sua possível constituição em torno do que se poderá vir a ter como verdadeiro.
 
O que hoje disputa o status deverdadeiro se confronta diariamente e com grande intensidade com a fraude hibridizada em diversas construções narrativas que circulam enquanto fenômeno desinformacional no seio da sociedade e possui duplo desafio que se estrutura de modo reticular em redes sociais digitais e que partem tanto de um mercado da construção intencional da desinformação e de um contexto social de produção, como também a partir do acolhimento das narrativas desinformacionais pela sociedade, estruturando um fenômeno social de grandes proporções.
 
 

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