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Sexta-feira, 10 de maio de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

07/05/2021 - 06h37

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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

07/05/2021 - 06h37

IGNORAMUS

 

Retorno hoje ao tema da ignorância que tanto tem permeado meus artigos aqui neste espaço opinativo, como também no espaço acadêmico e, principalmente, tem se colocado como central nas pesquisas e debates entre historiadores e sociólogos.
 
As manifestações que ocorreram em algumas cidades brasileiras no final de semana são reveladoras do complexo contexto em que atua não somente o mercado da construção intencional da ignorância, como eu e Marialva Barbosa denominamos em nosso livro lançado em 2020 pela Editora Mauad, mas também são reveladoras da manutenção da ignorância de parte do nosso povo, que optou por se afastar do conhecimento, dos fatos e das evidências para se apegar aos seus valores e às suas crenças.
 
Embora bastante relutante anteriormente, até porque minhas pesquisas circundam o campo da comunicação e seus tentáculos pelas redes de informação, cujo fenômeno deveria comunicar o conhecimento e que no atual cenário termina comunicando a desinformação e o negacionismo; tenho que concordar  efetivamente tanto com Yuval Harari, quanto com Peter Burke, dois nomes de grande referência no campo da história em nível mundial na atualidade.

Harari afirma que “o mundo está ficando cada vez mais complexo e as pessoas não se dão conta de quão ignorante são”.  Consequentemente pessoas que não sabem quase nada de ciência, de geopolítica, de mudanças climáticas passam a emitir opinião e a se tornar formadores de opinião em canais nas grandes plataformas digitais. São os Youtubers e os Digital Influencers das falas de si que exatamente, por se dissociarem dos caminhos de véritas e explorarem à exaustão os valores e as crenças terminam jogando muito bem os jogos impostos pelas estratégias de marketing das plataformas digitais e angariando não somente uma legião de seguidores cegos, mas também uma lucratividade considerável.

Nas palavras de Harari  as “pessoas raramente contemplam sua ignorância, porque se fecham numa câmara de eco com amigos que pensam como eles e com feeds de notícias que se autoconfirmam, fazendo com que suas crenças sejam constantemente reiteradas e raramente desafiadas”. Entramos aqui no paradoxo das bolhas que tem por trás a intencionalidade das plataformas de lucratividade própria e de aprimoramento constante de um modelo de negócios que nos mantém reféns de suas possibilidades, que constitui a  estrutura dorsal do denominado capitalismo de vigilância, tema do qual já tratei aqui a partir da Shoshana Zuboff.
 
Peter Burke, historiador inglês que no início do século XXI lançou o livro História Social do Conhecimento e que no momento escreve sobre a história social da ignorância, trata-se muito mais de um processo estratégico de manutenção da ignorância de parte da população, do que propriamente de uma criação, de uma produção ou de uma construção. 
Para ele, o fenômeno da desinformação em seus principais modos de atuação como desinformation ( desinformação intencional), misinformation ( desinformação não intencional) e mal-information (informação descontextualizada com  intenção de desinformar) atuam na manutenção da ignorância. 

Nesse sentido a ignorância se estrutura, portanto, não somente pelo contato com as narrativas desinformacionais que podem na recepção provocar os efeitos pretendidos por seus autores, mas também pela abrangência da composição social em termos de educação e cultura, relação com a experiência, com o passado, com a história, consciência ou inconsciência de si, e principalmente, consciência coletiva e histórica.
 
Para além das tensionalidades entre os regimes de verdade ( evidência de um lado, experiência de outro, valores e crenças de outro) que também são provocadoras e ao mesmo tempo, consequência da desinformação e da própria ignorância enquanto fenômeno social coletivo, temos principalmente a disposição individual e coletiva de acolhimento da ignorância como elemento catalizador das estruturas de dominação, atuando assim, como estratégia para instalação das hegemonias, levando o dominado a defender o seu opressor a ponto de se expor a um vírus letal e a combater as medidas que podem prevenir seu alastramento pelo país e o aprofundamento da catástrofe social em que nos vemos mergulhados.
 
No final de 2019, um estudo da Universidade de Regina no Canadá realizada com 2.500 pessoas concluiu que diferentemente do que se pensava, os usuários das redes sociais no hemisfério norte, normalmente tem consciência de que as narrativas que curtem ou compartilham carregam alguma fraude, mentira, imprecisão, descontextualização, etc.
 
A pesquisa colheu os resultados após expor os entrevistados à mensagens desinformacionais que tinham compartilhado, perguntando  se teriam checado as informações e o porque do compartilhamento. A resposta quase sempre foi a não verificação da informação, mas a concordância com seu conteúdo.
 
O Ignoramus que está na raiz da dúvida como mola propulsora para a ciência e para o conhecimento, se transforma nesse contexto não em algo que desperta a curiosidade e a vontade de saber conforme Foucault, mas a simples inércia do pensamento que se submete a vontade de engano conforme Nietzsche, ou seja, a naturalização dos estados sociais postos.

A ignorância tem portanto, se tornado nesse contexto de pandemia da Covid-19, de pandemia da desinformação e de desentendimento social e político, um elemento cooptado pela ação governamental para manter parte do povo brasileiro ao seu lado, ao mesmo tempo, em que expõe esta mesma parcela da população que lhe é leal,  ao vírus e à ação de Thanatos.
 
As estratégias que legitimam a ignorância coletiva,  perpassam o mercado da desinformação que se coaduna com a alienação colocada em voga pela ação de uma mística religiosa que impõe valores de um patriarcado e de perseguição a tudo o que é diferente de seu modelo de sociedade, de ser e de família, tornando seus fiéis cegos de sua própria condição social, histórica e política. 

A complexidade deste contexto nos revela que, para combater a ignorância não basta combater a desinformação, mas é preciso educar para leitura midiática e para a verificação das informações. É preciso trabalhar pelo desvelar dos fenômenos que a circundam, inclusive, os que se estruturam em uma mística religiosa que se pauta em uma fala de um Deus, uitas vezes, não Deus do amor, mas um Deus vingativo, impositivo, cruel.
 
Em nossa contemporaneidade, assim como no passado, a vacina para ignorância é o conhecimento. Espero que cada um de nós possa levar conhecimento aos que nos rodeiam. 
Se cuidem! Usem máscaras e pratiquem o distanciamento social. 

Namastê!

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