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Quinta-feira, 09 de maio de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

11/06/2021 - 07h03

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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

11/06/2021 - 07h03

A desinformação e o jornalismo

 

Do ponto de vista histórico a desinformação, assim como, a informação e o próprio jornalismo, para não falar de outros os campos do saber científico e das ciências do espírito, interliga-se de forma intrínseca com a verdade, a vontade de verdade e seu oposto a mentira, a vontade de engano, ou mesmo, a ficção.
 
Nesse percurso vale recorrer a Luciano, considerado por alguns um historiador, por outros o pai da ficção, que publicou no século II o livro A história verdadeira em que aborda a questão tensional entre a verdade e a ficção consumida como verdade. Na introdução do livro ele elenca alguns historiadores que teriam contado histórias fabulosas tais como Ctésias sobre a Índia sem nunca ter pisado lá, ou ainda Homero e Virgílio que escreveram histórias fantasiosas e que eram consumidas avidamente pelo público como verdadeiras. Na introdução do livro, Luciano diz que “não serei o único a renunciar à liberdade ficcional da qual todos vem se aproveitando. Incitado por uma vaidade rídica a deixar meu testemunho às gerações futuras mesmo sem ter vivido nada de notável, lá vou eu também. Rumo à falsidade. Falsidade, contudo, muito mais honesta que as demais. Pois, ao menos, há nela uma verdade: assumo estar mentindo. Isso mesmo. Você não encontrará pela frente uma única palavra verdadeira (e, com essa confissão, espero livrar-me de qualquer possível reprimenda. Nenhuma. Escrevo sobre fatos que nunca vi, nem vivi. De quem nem sequer ouvi falar. Sobre o que não existe, nem jamais poderia existir. Fica, em resumo, um aviso a todos os leitores: não acreditem em mim”.
 
A fala de Luciano embora muito distante do que vivemos hoje em relação às matrizes científicas, jornalísticas, históricas calcadas no regime de historicidade da modernidade cuja política da verdade estava baseada no método cientificista objetivista, especificamente, comprovado por evidências; é uma fala que nos suscita ponderação e nos faz perceber que a verdade nunca foi consensual e que o ponto chave e separador entre informação e desinformação, é desde sempre um ponto complexo. 

Informação e desinformação, faces de um mesmo fenômeno, desde então já disputavam o direito de falar como verdades que  confrontavam Aleteia e suas formas.

Mas, a verdade pode ser construída por diversos caminhos e pautada em diferentes valores e crenças. Foucault nos diz que cada sociedade em seu tempo, possui seu regime e sua política de verdade. E foi nesse contexto que Descartes, o patrono da Modernidade, terminou por criar um método de dedução dos pensamentos para o que seria o verdadeiro. Este método constituiria em seguir alguns princípios, como o da Evidência, o da Análise, o da Síntese, e, por fim, o princípio do Controle que tem como premissa a revisão permanente do processo de certeza, objetivando a não omissão de evidências possíveis que possam atestar o verdadeiro e contestar o não verdadeiro.

Para além do método cartesiano proposto a partir da máxima do Cogito - Penso, logo existo, ou, como afirmam alguns -  Duvido, logo existo -, Descartes que vivenciou um mundo em crise, nos deixou a dúvida como centro da construção do pensamento. Sobretudo, a dúvida que teve como raiz a inquietação sobre opiniões e valores que haviam pautado as verdades em sua vida. Este filósofo duvida de tudo sobre o que em tese não poderia haver dúvida e é duvidando que consegue chegar a uma proximidade com a verdade. O ponto que nos interessa aqui no pensamento de Descartes é a dúvida que nasce na contestação do sistema de crenças e de valores de uma dada sociedade, sobretudo, quanto confronta as possibilidades da realidade dada a partir da crença em um Deus que permeia toda sua percepção de mundo, com a projeção de uma realidade e da possibilidade de existência de um Deus do mal, que Descartes denomina de gênio maligno, cuja ação correria no sentido de enganar e manipular o pensamento do crente. Tudo o que não poderia ser duvidado passa a compor a dúvida e a solução encontrada por Descartes é a elaboração do método acima mencionado.

Os caminhos da razão cartesiana são utilizados para separar uma pretensa narrativa verdadeira de outra ficcional, ou mentirosa. Na origem portanto, das tentativas de elucidar os espaços de cada uma.

E o que tudo isso tem a ver com o jornalismo? Ora o jornalismo é uma das instituições da modernidade, vetor dos três topoi ( tempo novo, aceleração do progresso e disponibilidade da história)  e como tal foi completamente desenhado para se adequar a idade da razão potencializada pelas tecnologias da comunicação de massa e, posteriormente, da informação. Essa transformação se deu a partir de uma nova construção para o ethos jornalístico com a inserção das premissas da cientificidade moderna (objetividade, imparcialidade, tempo presentificado para reafirmar o testemunho do jornalismo frente aos fatos sociais,  método de apuração, enfim, caminhos para a verdade), visto que somente uma pretensa verdade que se impusesse acima das demais poderia ter tanto valor agregado a ponto da sociedade confiar e  pagar para tê-la. 
 
É válido lembrar que o ambiente anterior do jornalismo era opinativo e potencialmente político.  Como nos diz Bourdieu foi o encontro entre o Comments e o News que permitiu a formação de um campo em que se forjaram habitus e se instituíram valores específicos a ponto do jornalista adotar o que Bourdieu denomina de óculos especial para ver a realidade.

Mas nada disso livrou o jornalismo da desinformação, sobretudo, porque sua constituição primeira como instituição localizada contextualmente e temporalmente em cada sociedade onde se fez primordial, possibilitou ao próprio jornalismo não somente criar, mas vender, a desinformação ao lado da informação, assim sendo credibilizada por algo que na verdade era o seu oposto. 

O fato é que os métodos modernos não eram tão eficazes e ainda não o são, para combater a desinformação. Do meu ponto de vista o jornalismo necessita se reinventar não nas mesmas bases de um processo metodológico moderno e vinculado a um passado, mas que dialogue com o mundo virtual e nossa biosvirtual, isso implica reconhecer os links possíveis entre os regimes de verdade embasados no método e os regimes de verdade embasados na experiência, nos valores e nas crenças. Reconhecer a subjetividade do profissional e da instituição e principalmente, adotar condutas éticas e normas deontológicas que efetivamente respeitem a sociedade e o indivíduo.

Acredito que o jornalismo é um grande aliado da sociedade para combater a pandemia da desinformação, mas creio que necessita ouvir os demais campos do conhecimento e, principalmente, ouvir a sociedade e com esta criar partilhar laços de afetividade a fim de compreender seus anseios e estabelecer novas bases para o contrato, não mais somente de leitura, mas de interlocução.

O jornalismo necessita parar de trair sua vocação em prol dos interesses mercadológicos. Ou servimos à sociedade ou caímos na suspeição, abrindo espaço para que o mercado da desinformação ocupe o lugar do jornalismo na vida das pessoas, provocando caos e até mesmo morte, no atual momento pandêmico.

Catraca Livre

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