Facebook
  RSS
  Whatsapp
Domingo, 05 de maio de 2024
Colunas /

Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

29/07/2021 - 20h10

Compartilhe

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

29/07/2021 - 20h10

Diário da inconsciência de si: o medo do feminismo!

Simone de Beauvoir, autora de várias obras em prol da causa das mulheres

 Simone de Beauvoir, autora de várias obras em prol da causa das mulheres

Era começo de tarde na terça-feira, 20 de julho, quando uma amiga me enviou uma mensagem pelo Messenger informando que ela e outra amiga, ambas escritoras e feministas queriam me fazer um convite. Eu estava em reunião, contudo, tão logo conclui já entrei no whatsApp para responder que estava disponível e lá já estava o convite:_ participar de uma reunião na quinta-feira, 22 de julho, às 19 h, quando seria criada uma agremiação de escritoras piauienses ou aqui sediadas.
 
Sexta-feira, 23 de julho, 8 h da manhã vou ao píer de madeira entre as árvores da minha casa no morro e recebo o vento que me acaricia como um beijo da natureza que me encontra, ao tempo em que pratico um pouco de yoga e agradeço a gaia pela vida e pela oportunidade de educar e lutar pela vida das mulheres, de todas as mulheres, em um país machista, misógino e hipócrita. 

Às 9 h já estava no computador começando a jornada do dia que, invariavelmente, dura 10 horas. Comecei realizando uma rápida pesquisa no principal motor de busca da internet e também o maior raptor de dados da sociedade, o Google, mas naquele momento não cabia questioná-lo, tão somente me apropriar do seu imenso poder de vigilância social holística que o mesmo possui. Digitei a frase: mulheres assassinadas no dia 22 de julho de 2021. Inúmeras matérias postadas em jornais, portais de notícias, sites e blogs, perfis das redes sociais surgiram e pude sentir a dor e chorar com tanta violência em um só dia. Uma mulher, jogadora de futebol, foi morta a tiros em Florianópolis na rua de sua casa, outra foi assassinada a tiros pelo namorado e na frente da filha em Cuiabá, já uma terceira foi morta a golpes de barra de ferro e a facadas na cidade de Curral de Dentro em Minas Gerais, uma quarta foi violentada, assassinada e teve o corpo abandonado em uma rua de Porto Alegre. Enquanto isso, matéria da jornalista Maria Romero no G1 Piauí, publicada em 18 de julho de 2021 nos diz que metade das mulheres assassinadas em 2020 em nosso estado, foram vítimas de feminicídio.

Retorno à noite de quinta, 22 de julho, dia em que tantos feminicídios foram cometidos em todo o Brasil. A reunião estava marcada para as 19 h. Termino uma penúltima reunião por volta das 18h30 e corro para um rápido banho, coloco uma roupa bem leve, passo o batom de sempre, única maquiagem que uso, corro na adega e me sirvo de uma taça de vinho branco, uma vez que o momento além de histórico prometia ser leve, um bom modo de concluir um dia de trabalho no meio de uma semana atribulada. 

Já de volta ao meu escritório, acesso o link do google meet e me conecto bem no horário previsto. Na sala virtual, cerca de 10 pessoas e mais outras tantas em espaço presencial na cidade de Teresina. Começamos a esperada reunião nos apresentando visto que apesar de estarmos entre algumas amigas, outras não conhecíamos e assim, o momento inicial foi de apresentação, acolhimento e afetividade, que terminou rompido logo no começo dos trabalhos para leitura e aprovação do estatuto, quando propus a mudança do nome proposto para a instituição a ser criada, com a inserção da palavra feminista, que não se contrapõe à nomenclatura feminina, mas que não pode ser desconsiderada no contexto a que se propõe a instituição, nem tampouco considerando nossa responsabilidade diária, enquanto escritoras e acadêmicas, na luta e na educação contra a violência que a mulher sofre no Brasil, sobretudo, as mulheres negras e trans.

Essa proposição simplória que do meu ponto de vista seria algo de simples resolução e rápida aprovação, uma vez que o primeiro capítulo do Estatuto já deixava claro ser uma proposição de uma atuação feminista, trouxe desconforto para algumas participantes. Uma delas, Presidente da Associação de Letras da cidade em que nasci, foi enfática diversas vezes, afirmando que se a instituição fosse feminista ela não participaria, visto não ser feminista, enfatizando ainda que o feminismo não respeitava opiniões e nem era democrático.  Tal posicionamento, deixou outras incomodadas, ao que parece porque parece que não gostariam de ser discriminadas ou rotuladas. 

Em ambas as posições há uma clara e evidente inconsciência de si, enquanto ser no mundo capaz de ações transformadoras em uma vida fática. A inconsciência de si, nesses casos apresenta vertentes distintas de inconsciência histórica, o que nos leva a diferentes relacionacionamentos com o passado, enquanto experiência antropológica e também enquanto história. 

No primeiro caso da antifeminista, a inconsciência é histórica pensando aqui em Paul Ricoeur, mas o desejo de manutenção da ignorância é latente e aqui a alusão é para Peter Burke. A primeira questão da inconsciência histórica é séria, mas está relacionada tanto ao silenciamento imposto pela cultura androcêntrica como pela educação falha do ensino brasileiro que apenas alfabetiza, mas não educa. Desconhecer que desde Pitágoras a mulher tem sido discriminada em todas as sociedades, não é pecado. Mas é preciso saber que o ele disse ainda hoje ressoa em nossas vidas, a saber: “existe um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher”. 

A mulher foi e ainda é, em muitas culturas, um não ser. Na idade média, por exemplo, além de portadoras do mal, erámos também consideradas sem alma e, portanto, sem possibilidade de proximidade com a divindade, no caso Cristã. Mas não saber o processo histórico pelo qual passamos não é o maior dos pecados. Não conhecer a luta das mulheres operárias queimadas vivas em uma fábrica, não conhecer a luta de tantas pelo direito de existir e de ser reconhecer cidadã a partir do voto, não saber que a história da mulher em todas as áreas sempre foi subjugada na ciência, nas artes, na literatura, no jornalismo, ainda assim, não é pecado. Não conhecer a obra de Simone de Beauvoir, de Lélia Gonzalez e Judith Butler, também não é obrigatório, mas ao ser exposta a tais conhecimentos e ainda assim negar tais lutas e o direito ao feminismo, isso sim é grave, porque reflete o desejo de manutenção da ignorância. 

Tentei explicar que o feminismo luta pelo direito de existir, luta pelo direito de equidade que supera o de igualdade. Tentei explicar que o feminismo é essencialmente democrático porque luta pela inclusão da mulher com direito a uma cidadania plena e contra todo o tipo de submissão. Tentei explicar, portanto, que Feminismo não é o oposto de machismo, o oposto do machismo é FEMISMO. Todavia, a senhora escritora e Presidente da Academia de Letras da cidade em que nasci, não quis saber ou ouvir. Como nos diz François Hartog, quanto maior o desconhecimento do passado, mais distante e indefinido se desenha o futuro, a expectativa.  A inconsciência de si neste caso é sim histórica, mas é também uma consciente escolha pelo desejo de não saber.
 
 
Nas demais companheiras de reunião que tiveram medo de assumir a nomenclatura, vislumbro muito mais a espiral do silêncio, o medo de assumir a luta e o lugar social que nos cabe, do que uma inconsciência de si e de seu lugar na coletividade, talvez o medo que nos assola nesse momento de distopia e de desgoverno tenha prevalecido. 

Pois bem, como já fiz dezenas de vezes, neste meu espaço opinativo, convido todas, todos e todes a serem também feministas. Os homens devem também se assumir feministas e defender as mulheres que morrem a cada dia, defender as mulheres que são estupradas a cada dia, defender as mulheres que são violentadas de todas as formas e que, invariavelmente, são culpabilizadas pelos crimes que sofrem. Sou FEMINISTA, filha de feministas, namorada há 30 anos de um feminista e mãe de 03 lindas feministas. Seja você também feminista!!!

Comentários