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Quinta-feira, 28 de março de 2024
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Gorete Gonzaga

Gorete Gonzaga

gonzagagmaria@gmail.com

23/01/2018 - 12h52

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Gorete Gonzaga

gonzagagmaria@gmail.com

23/01/2018 - 12h52

Palavrões, o empobrecimento da prosopopeia da vida

 

Com sua permissão para um preâmbulo mais que audacioso logo no iniciar dessa nossa conversa aqui. Em pleno ataque de atrevimento, arrisco uma comparação da minha aprendiz a pessoa (!) com os inimputáveis dramaturgos Ariano Suassuna e Osman Lins.
 
O primeiro, da Paraíba, legou-nos, no imaginário da Literatura, os pitorescos Chicóe João Grilo (no cinema: Selton Mello e Matheus Nachtergale, respectivamente), do clássico O Auto da Compadecida. O segundo, ninguém menos que o pernambucano que deu vida à encantadora Lisbela (Débora Falabella) e ao amado vigarista cheio de charme de nome Leleu (Selton Mello, novamente), no romance Lisbela e o Prisioneiro (imagem acima).
 
Foi muita audácia, não foi? Tenho certeza que um xingamento qualquer lhe veio à mente agora! Por favor, deixe-o aí mesmo, que explicação há.
 
Tal qual os romancistas de excelência inquestionável que já partiram para a colônia das estrelas, também eu não aprecio em nada a exacerbada verborragia dos palavrões. Sequer nas páginas da vida; tampouco, nas páginas da Literatura. É aqui que ficamos na comparação. E tão somente.
 
Assim,ler qualquer impresso com nome de obra literatura crivado de destemperos e obscenidades despropositais tem sido um exercício bem difícil, em tempos de artes de consumo.

Ariano já dizia: "eu não gosto de palavrão, acho vulgar e mesmo sem graça! Só gosto de ouvir uma obscenidade quando ela é dita de maneira inteligente, dessa maneira que Freud disse: quando ela é dita, colocando-se a obscenidade por baixo de palavras de aparência inocente”.
 
Aos contadores (emergentes e aspirantes) de história, fica a dica! E, seguimos com Suassuna, incondicionalmente.
 
A Literatura, mesmo em tempos de liberdades e democracias (questionáveis!), segue sendo uma Arte:a habilidade de narrar, versificar ou dramatizar um enredo! Um livro é um registro imortalizador. Artístico ou documental, o livro resguardará, para as gerações porvir, ideias, emoções, saberese fazeres que o autor ou a autora venha a registrar, na condição de quem conta a história.
 
Obscenidade não humaniza. Torna medíocre.
 
Particularmente, penso que, colocar um quilo e meio de xingamentos e obscenidades na boca de um personagem com o fim de torná-lo “mais humano”,é subjugar a arte literária à equivocada simplificação do humano como empobrecimento vocabulário raivoso somente.
 
Que me desculpem os que apregoam a estranha obrigatoriedade da Literatura em“mostrar gente de verdade” em suas páginas! Questionável isso! Realidade - nua e crua - é para o Jornalismo. E atentai que existe, ainda assim, quem proteste!
 
O uso estético da linguagem escrita. Isso é Literatura. Desde a antiguidade até os dias de hoje. E torço para que este ofício sobreviva à era do desguarnecido descartável.Literatura é a prosopopeia da vida. É o “transitar” nas ideias, nas mensagens e nas emoções das tramas interessantes e dos personagens imortalizáveis e arrebatadores! 
 
Se possível for, é abrir uma página de um livro e mergulhar de cabeça em um universo inteiro de irreal puro. Quem é que quer realidade como entretenimento? Que cumpra seu papel o documental!
 
Humanizar demais a coisa literária (recheando-a de obscenidades e porcarias linguísticas, como reclama Ariano Suassuna) é extirpar da Literatura sua mais linda função:a de arremessar o leitor da realidade a outra dimensão, a ficcional.
 
E vale recomendar não cair na tolice de rotular como aborrecido aquele contador de história que não lança mão de palavrões para fazer a ponte de seus pensamentos com seus personagens. As narrativas de Ariano e Osman são tudo, menos maçantes! Quem já leu ou assistiu e deu boas risadas com Lisbela e Leleu, Chicó e Zé Grilo, sabe do que estou falando aqui.
 
Os personagens dos romances de Lins e de Suassuna desenvolvem falatórios extremamente formidáveis, contagiantes quantas vezes os revejamos, sem cuspir uma só obscenidade! Nem quando fazem obscenidade. E observemos que um dos seres centrais da trama do Auto da Compadecida é um espertalhão (Zé Grilo) capaz de levar na conversa até o senhor das trevas! Em Lisbela e o Prisioneiro, temos, dentre outras pérolas da narrativa sem palavrões, o meu predileto, o Frederico Evandro (Marco Nanini), um sanguinário matador de aluguel impiedoso, mas incapaz de mortificar o idioma nacional.


 Frederico Evandro– sanguinolento, sim, mas sem assassinar o português


Como, então, xingar sem soltar um palavrão...
 
Ariano Suassuna ensina, para bom apreendedor, como expressar raiva, medo, desgosto, revolta e os eteceteras de modo enfatizado, sem, porém, pronunciar um só destempero!
 
A lição, nas palavras do mestre (tem vídeo no Youtube, para reforçar o aprendizado):

“Tem uma história do povo que diz que, lá no Recife, vinha um frade capuchinho.Ele tomou um taxi e sentou ao lado do motorista. e o motorista era um desses motoristas loucos. Naquele trânsito doído, encheu o pé e começou a fazer loucura (no trânsito). Aí, o frade arrastou o rosário e começou a rezar, com medo. Aí, de repente, o motorista foi ultrapassar um carro, vinha um ônibus e para não bater no ônibus, ele virou assim e bateu num pé de figo Benjamim.Pá! Quebrou a vidraça, o frade bateu a cabeça, cortou-se no vidro, puxou o lenço e colocou (na testa), para segurar o sangue, e falou para o motorista:
 
— Ô, meu filho, seu pai e sua mãe ainda são vivos?
— São.
— Você quer me apresentar os dois para eu fazer o casamento deles?”
 

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