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Sexta-feira, 29 de março de 2024
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VC no Acesse

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acessepiaui@hotmail.com

16/02/2018 - 18h15

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16/02/2018 - 18h15

O povo brasileiro e o brilho eterno de uma mente sem lembranças

Há um certo consenso em torno da ideia de que devemos conhecer o nosso passado. A história nos mostra algo que rompe com o senso comum da caminhada evolutiva da humanidade, são os ciclos históricos. De tempos em tempos as mesmas coisas se repetem, infinitamente, podemos dizer, gerando as mesmas consequências em níveis e com resultados pouco diferentes.

Para isso o remédio da história.

Como diria Marx, a história se repete, uma vez por tragédia e a outra por farsa, e eis neste ponto central que entramos no nosso conceito inicial de conhecimento do passado.

Ora, se a sociedade é guiada por ciclos e repetições, decorrentes das falibilidades humanas, estudar o nosso passado evita a repetição de tragédias, como sendo estas frutos do desconhecimento. A tragédia, por definição, é um evento com desfecho traumático, inesperado, nos ditos de Marx, quando acontece pela primeira vez, devendo ser guardado na memória dos povos, por meio da história, para que não volte a se repetir.

Conhecer as tragédias do passado é uma vacina contra tragédias futuras, mas não garante uma imunidade total.


O conhecimento pode ser maculado pelo poder, e o poder pode, eventualmente, arriscar-se a adentrar novamente em uma tragédia montando uma farsa jogando por “sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia” (Eça de Queirós).

Neste sentido a nudez forte da verdade é a história como um profeta, desnudando os erros já cometidos, mostrando caminhos que não mais deveriam ser seguidos, “A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será.” (Eduardo Galeano).
E o véu diáfano da verdade seria a farsa, esta que se monta por sobre os olhos hipnotizados das pessoas que desconhecem o próprio passado, e pedem, cegas pelo véu que se posta em fantasia à sua frente, para participarem desta mesma farsa, mal sabendo que são títeres encenando a tragédia e que por ela serão vitimadas.

Ao ver pessoas imersas em um binarismo messiânico e demonizante, pode se desnudar a mesma história síntese dos grandes erros do passado, aquelas que negligenciaram o essencial na humanidade que somos: a capacidade de enxergar as infinitas possibilidades e a miríade de tons entre o bem e o mal extremo que vive dentro de cada pessoa, para além da díade esquerda-direita que quer introjetar-se em toda e qualquer discussão no país, e no âmbito do Processo Penal vem dilacerando o nosso já combalido sistema, a nossa fragilizada colcha de retalhos chamada CPP, e levando consigo a tecitura que sustenta a democracia que pretendíamos, lá nos idos de 1988 criar: a Constituição.

Na construção desta fantasia, e em nome de idealizações do bem e do mal como um grande espetáculo, um Coliseu renovado, um circo virtualizado e pulverizado nas redes virtuais de nosso tempo, novos avatares se formam substituindo e reunindo em si aspectos das instituições que deveriam representar, em adjetivos que exultam qualidades ou que vociferam o ódio canalizado a outras.

De todo o complexo disforme da justiça, e do ideal que representa este poder, erguem-se pessoas que, lançadas às luzes dos holofotes televisivos, “pixelizadas” [1] nas telas, “memetizadas”[2] com duas ou três frases sob fundo de expressão, travam uma guerra silenciosa para encarnarem como avatares de Themis a essência decantada de um poder muito mais amplo, deixando de ser cegos ao que pesam em suas balanças, deixando de aplicar a mesma força quando golpeiam com suas espadas: a antropomorfização da justiça traz consigo a mácula das falhas humanas, e deixa um poder grandioso e belo como a justiça, um tanto quanto menor, ao permitir-se encarnar em um ser imperfeito e complexo como o ser humano – o poder nunca pode ser menor do que seus representantes.

Em outros campos, no âmbito político, da mesma forma se reduz a multiplicidade partidária a aspectos ou a líderes partidários que engolem, seja por imposição de sua força política, seja pela idealização jogada por sobre si, os próprios partidos – neste aspecto, partidos ficam menores que personagens políticos, e os seres-políticos, com todas as suas falhas, tornam-se caricaturas de algo maior, da política, sobrepujando a mascarando a necessidade essencial do âmbito político para a saúde de qualquer democracia.

Nesta caricaturização dos poderes, um reducionismo da realidade, fomentado muitas vezes pelo debate raso dos meios de comunicação e decorrente da fragilidade educacional somada à legião de imbecis especialistas soltos nas redes sociais, dividindo debates em que um Doutor em uma área tem o mesmo espaço de qualquer pessoa, como dizia Umberto Eco.

Neste mundo de reduções, as falhas humanas de pessoas vinculadas a instituições, nesta tendência de caricaturização, faz com que haja uma confusão entre os deslizes das pessoas investidas no poer institucional com a própria instituição, como já está acontecendo hoje no Brasil.


Um exemplo claro é o STF. Quando falha um ministro, quando excede-se em sua figura humana, logo confunde-se esta falha da pessoa-ministro à uma falha institucional da Corte Suprema e do próprio poder Judiciário, chegando até o sistema de justiça criminal, assim com o Ministério Público, assim com as Polícias, com a política (hoje totalmente demonizada), com os partidos, chegando até a redução suprema de jogar toda a culpa à população, naquele estereótipo homogeneizante do brasileiro passional, cordial, corrupto e sensual.

O máximo golpe de ilusionismo é dizer que a culpa de todo o mal, e da falha das instituições é do povo, é da democracia, é do diálogo, este é o flerte máximo com o retorno ao passado, quem manipula o poder é sempre desejoso pelo seu clamor de poder supremo ser o clamor social.


Ao enfatizar os políticos corruptos se demonizam os partidos e a própria política; ao enfatizar decisões ruins e falhas de juízes e ministros se demoniza o judiciário; ao enfatizar erros de procedimento ou a corrupção policial se demonizam as polícias, e assim se repete com toda instituição.

Não se critica aqui, longe de ser esta a intenção, de falar que não se podem criticar os poderes, o erro não está na crítica, principalmente aquela abalizada e fundamentada feita na academia. O erro é a enfatização do erro da pessoa a tomando pela instituição a qual ela está vinculada. Ainda que falhem cinco ou seis ministros do STF não se pode dizer que falhou à Corte, menos ainda que houve uma falha do poder judiciário em si, ou que não há justiça no Brasil, só para exemplificar neste poder.

A questão é a tendência natural da comunicação social em criar personagens para criar histórias, e o reducionismo do entendimento do senso comum que confunde, não raras vezes, o poder impessoal e institucional ao que lançou mão dele e suas falibilidades humanas.


Ao final se demoniza o povo, dizendo ser por culpa dele a escolha errada dos políticos, e por conta destas escolhas erradas todos os problemas da nação, tudo decorrente da homogeneização do brasileiro ainda nas raízes do Brasil como ser cordial, moralmente inferior, indigno de confiança e essencialmente corrupto, em contradição com o ideal protestante pré-capitalista estadunidense justo e mítico em sua nobreza (Jessé Souza).

Por detrás deste discurso vem um ódio à democracia e seus erros naturais. É mais do que natural o Brasil, tão jovem em democracia, errar, e com seus erros buscar acertar, eleições periódicas são feitas para isso. Países democráticos estão séculos neste jogo de tentativa e erro e ainda erram, o que dizer da escolha estadunidense de Trump?

O normal é exatamente errarmos e mudarmos os políticos na próxima escolha, e nunca permitir a substituição desta possibilidade de escolha pela imposição de um grupo pequeno que dite os rumos por ser mais esclarecido, mais moralmente correto, ou mais digno de definir os rumos de uma nação como a nossa.

O véu que tenta se impor hoje é esconder que isso já aconteceu no passado, no Brasil por reiteradas vezes substituíram a possibilidade de escolha do povo pela escolha de grupos, e nunca nada bom surgiu destes regimes que tiveram em comum o ódio à escolha popular, o ódio à evolução natural que as democracias devem ter ao permitir a alternância entre vertentes políticas e ideológicas.

A questão nunca é suplantar, mas sim aperfeiçoar a democracia. Qualquer retorno ao passado é farsa que brota do vazio do pensamento quanto à nossa história como Brasil e como humanidade.

No mesmo sentido, qualquer pessoa ou regime que se erga por cima da ruptura democrática representada pela vontade popular não merece ser chamado de líder será sim um ditador que imporá as regras apoiado por seu grupo, pouco ligando para a vontade do povo, tal e qual vemos hoje, após a substituição de uma presidenta eleita por um títere, a arquitetar um Brasil para um pequeno grupo econômico, exatamente aqueles a quem ele é fiel, e que lhe deram o poder, mesmo que como fantoche da suas vontade.

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Enio Walcácer é mestre em Prestação Jurisdicional pela Universidade Federal do Tocantins – UFT. Especialista em Ciências Criminais e em Direito Administrativo pela UFT.  Graduado em Direito e Comunicação Social pela UFT. Publicado na Carta Capital.

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