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Segunda-feira, 20 de maio de 2024
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José Osmar

José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

25/11/2019 - 08h34

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José Osmar

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25/11/2019 - 08h34

IMPRESSÕES DE UMA VIAGEM A CUBA (CAPÍTULO IV)

San German é um pequeno núcleo urbano, com cerca de quinze mil habitantes, localizado no Município de Urbano Noris, Província de Houguin, Sudeste do País.

Transporte público em Cuba. Crise obriga o povo a se locomover como se ainda estivesse no Séc. XIX.

 Transporte público em Cuba. Crise obriga o povo a se locomover como se ainda estivesse no Séc. XIX.

Nosso último dia em Trinidad terminou por volta das 13:00H, num pequeno restaurante às margens da Carreteira Central, pela qual chegaríamos a Houguin e, em seguida, a San German.

San German é um pequeno núcleo urbano, com cerca de quinze mil habitantes, localizado no Município de Urbano Noris, Província de Houguin, Sudeste do País.

A pequena San German estava em nosso roteiro por duas razões muito importantes: porque é pequena e porque ali mora o médico Alexis Rodriguez, que conhecemos no Brasil, em janeiro de 2018, quando trabalhava no Programa Mais Médicos, na cidade de Beneditinos, localizada a 95 km de Teresina/PI.

Queríamos conhecer uma cidade pequena do interior de Cuba para vermos as diferenças entre os grandes núcleos urbanos e as regiões rurais do País, e San German era ideal para esse nosso propósito.

No fim da tarde chegamos à casa do nosso amigo Alexis e de sua esposa Daiana, também médica. Alexis é ortopedista e Dayana é especialista em epidemiologia. Ambos nasceram e trabalham em San German.

Uma pequena recepção foi organizada para nos receber na casa dos pais do Alexis. O pai dele, que também se chama Alexis, foi militar. Lutou na guerra de Angola e atualmente trabalha na empresa de água e esgoto da cidade. A mãe do Alexis lamentou que o caminhão com carne de gado que chegara no dia anterior a San German não tivesse sido suficiente para abastecer toda a cidade. Há escassez de proteína animal atualmente em Cuba, especialmente de carne bovina. Comemos, então, frango, bolinhos de verdura, arroz e salada; bebemos suco e cerveja. Para mim foi ideal, pois à noite prefiro frango a carne vermelha.

A conversa foi boa, animada, falamos de vários assuntos, mas, como não podia deixar de ser, a política foi o assunto principal. O médico Alexis é comunista, mas o pai dele não é. A discussão girou em torno das vantagens e desvantagens do comunismo e do capitalismo. Alexis pai  prefere a liberdade, a livre inciativa, a possibilidade de abrir seu próprio negócio (ele é engenheiro mecânico); Alexis filho se contrapõe, alertando que no capitalismo não há garantia de saúde e educação para todos, e que foi justamente o socialismo que propiciou ao pai e a ele próprio terem curso superior; Alexis pai contra-ataca, lembrando que a educação não tem serventia se não há salários dignos (atualmente, um médico cubana ganha cerca de 100 dólares por mês) e se o regime não consegue superar a escassez crônica de bens e serviços; neste ponto, perguntei se o embargo não tinha papel decisivo para a situação em que o País se achava, tendo ambos concordado que de fato sem o embargo a situação seria muito melhor. Toda a discussão transcorreu no mais absoluto respeito entre os familiares, as vozes, portanto, não se alteraram.

Durante a viagem notamos que os mais velhos são defensores ardorosos da revolução, enquanto os jovens ou se abstêm de opinar ou são contra. O velho soldado Alexis, porém, é uma exceção. O motorista Yuri participou do debate. Ele é um comunista convicto e ficou bastante chocado com as ideias de Alexis pai, que tem um filho mecânico, William, formado em Cuba e, atualmente, morando e trabalhando nos Estados Unidos, casado com uma norteamericana. Ao Yuri pareceu um absurdo que aquele homem pudesse ser contra um regime que propiciou tantos benefícios à sua família. Dormimos na casa dos pais do médico Alexis, num quarto com ventilador e ar-condicionado. O povo cubano é muito acolhedor e faz de tudo para agradar os visitantes.

A cidade. San German é uma típica cidade de interior. Todos se conhecem pelo nome, todos se cumprimentam. Em termos arquitetônicos, em nada difere das cidadezinhas do interior do Brasil, porém, com uma diferença fundamental: o nível de escolaridade do povo é altíssimo, há hospital, dentistas e médicos de várias especialidades. Não vi banguelas nem filas no hospital. Embora o capitalista Alexis, o pai, tenha nos advertido de que não devíamos descuidar de nossas malas, que tinham ficado na calçada enquanto nos cumprimentávamos dentro da casa, não vimos qualquer sinal de violência em San German, onde a vida é, digamos, linear. Não há diferenças visíveis entre ricos e pobres, até porque, claramente, não existem ricos em Cuba (no capítulo sobre a economia falarei sobre as “classes sociais” cubanas).

A paisagem de San German é dominada por uma centenária usina de açúcar, e seus canaviais. Em razão disso, a cidade sofre as consequências ambientais que a monocultura normalmente impõe a todas as comunidades onde se instala. Conhecemos bem essa realidade, especialmente no Nordeste do Brasil. Lá, tudo gira em torno da usina, logo, todos os trabalhadores são funcionários públicos.

Pela manhã, demos uma volta na cidade. A poluição do ar é visível, agravada pelo intenso tráfico dos velhos caminhões canavieiros que cortam a cidade dia e noite. Muitas ruas estão com a pavimentação estragada. San German me pareceu uma cidade muito mal administrada.
Fomos ao posto colocar combustível. Pagamos, como sempre, em espécie, pois a internet, muito fraca, não permite passar o cartão. A caminho do posto, passamos pela estação ferroviária. O trem transporta apenas carga, especialmente a produção de açúcar da usina. Na volta, conhecemos o terminal rodoviário. Ali, uma cena incomum para nós: centenas de charretes puxadas por cavalos fazem o transporte coletivo da cidade, ao lado dos velhos ônibus que se deslocam vagarosamente para os distritos rurais.

A cena das charretes me transportou, com tristeza, para a Londres do Século XIX, do detetive Sherlok Holmes. San German é uma cidade parada no tempo, talvez à espera de uma nova revolução.
 
(Continua no próximo capítulo)
 
 
 

José Osmar

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