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Domingo, 19 de maio de 2024
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José Osmar

José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

23/03/2020 - 14h25

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José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

23/03/2020 - 14h25

Estranhas sensações prequarentena

 

Aos meus improváveis leitores informo que o que descrevo nestes quadros são a minha própria experiência na preparação para a quarentena imposta pelo coronavirus.
 
Primeira sensação. Não há novidade em afirmar-se que a vida em si é uma ciência impenetrável. A bem dizer, vivemos como cegos, tateando no escuro. Afinal, quem pode prevê o que ocorrerá no próximo ano, no próximo mês, na próxima semana, amanhã, daqui a um minuto, no próximo segundo? Podemos apenas supor os passos futuros de nossa existência, e torcer que tudo dê certo.

No entanto, a minha condição de funcionário público, membro de uma carreira de estado, titular de um dos cargos mais bem pagos do País, estável e vitalício por “absoluto mérito meu”, me fez embotar os sentidos e aos poucos a vida me pareceu bastante previsível.

Caminhei assim por longos anos até que algumas das minhas certezas foram postas em xeque por uma simples notícia: um vírus, o menor dos viventes conhecidos, invisível e mesquinho, podia destruir o mundo.

Como assim um vírus?! O mundo não seria destruído pela guerra e queimado pelo fogo?!

Por mais que eu tenha acesso a uma miríade de informações, a situação em si é absolutamente desconhecida, pois, quem desta geração já viveu uma pandemia? Já a vimos em filmes, é claro, mas a ficção apenas imita a realidade.

E assim de repente toda a segurança do meu cargo vitalício esfumou-se, e eis que eu me vejo igualado aos homens comuns. As minhas certezas sumiram e os medos voltaram. Que garantias terei nos escombros de um mundo em que só eu e os de minha careira de estado sobrarem?
 
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Segunda sensação. Não havia, porém, tempo a perder. O Governo ordenara que eu me preparasse para o pior. Devia me recolher à minha casa e esperar segunda ordem.

Então, fiz o que os amigos estavam fazendo: fui ao supermercado disposto a comprar comida para dois meses, para mim, minha mulher e meus dois filhos.

E eu, que quase nunca vou ao mercado, comecei a colocar no carrinho os itens da lista feita por minha mulher: “20 kg de arroz, 8 kg de feijão, 25 kg de carnes variadas, 30 litros de leite etc, etc, etc”. Em pouco tempo, precisei pegar outro carrinho.

Havia muita gente, todas pareciam ansiosas. Uns compravam bebida, outros compravam lanternas, e ainda uma que comprava um aparelho de cortar maçã em cubinhos.

Nos corredores vi muitos carrinhos cheios como os meus, e também outros bem vazios. Meio de soslaio, escutei a conversa de uma mulher com o filho, talvez de uns dez anos: “Essa aí não, é muito cara. Pega a outra”. O menino insistia, queria levar a mercadoria mais cara. Mas, enfim, obedeceu à mãe.

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Terceira sensação. Fiz as compras e fiquei uma eternidade na fila do caixa, de máscara. Na minha frente um rapaz ainda jovem, também de máscara e com luvas de plástico nas mãos. Notei uma certa apreensão nele. Olhava constantemente para os lados e para trás, até que me advertiu: eu devia manter-me a dois metros dele. Por um instante fiquei chocado, irritado. Mas me acalmei, ciente dos riscos do vírus. A inquietação dele permaneceu, porém, mesmo após eu vigiar a distância. Já estávamos perto do caixa, quando de repente ele saiu da fila e foi para o final da fila de outro caixa…
 
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Quarta sensação. Estou em casa cumprindo a ordem das autoridades. Elas nos dizem que estamos em guerra, e eu acredito. E assim parado me sobra tempo pra ler, e eis que leio a notícia de que na zona oeste de São Paulo o vendedor ambulante José Maria, de 65 anos, há 30 anos vende sorvete no estacionamento de um hospital. Ao ser questionado porque não estava de quarentena, ele ri e pergunta ao repórter: “O que você quer que eu faça? Se eu não morrer desse vírus, morro de fome. Não posso parar de trabalhar”.
 
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Possível resumo das sensações. Do que mesmo rir o vendedor de sorvete José Maria? Talvez sorria da própria miséria, ou das preocupações ingênuas do repórter com uma segurança impossível quando as “vitaliciedades” não permitem que ele pare de vender sorvetes, senão morre de fome.

O sorriso do vendedor de sorvetes contrasta com o medo estampado no rosto do rapaz da fila. Esse me pareceu tão parecido comigo! Provavelmente também ele um funcionário público cioso de sua estabilidade. E sendo estável – estou apenas supondo que o seja -, tratou de se afastar de mim com medo de pegar a doença e isso perturbar a sua vida tão estável.

O medo nos torna inimigos, e inimigos não andam próximos nem nas filas dos supermercados. Talvez por isso eu não me aproximei daqueles dois para lhes dizer que podiam levar o pacote de linguiça de marca famosa, coisa de dez reais mais cara do que a que puseram no carrinho bem vazio. Apenas dez reais e eu nada fiz! Que lazeira!

Concluo este resumo, que já se alonga, reconhecendo que é vã a segurança que pensamos ter se todos não estiverem seguros, pois a insegurança de uns, no limite, leva o caos a todos, e no caos nada do que somos e temos nos salvará. Tudo está interligado, de sorte que, efetivamente, uma borboleta bate as asas no Japão e no sul da Bahia a tribo dos pataxós sente uma leve brisa no ar.
 
PS.: Uma coisa, porém, me encabula: o que faz uma pessoa, no meio de uma guerra pela vida, querer comer maçã cortada em cubinhos?
 
*O autor é promotor de justiça
 

 
 

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