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Segunda-feira, 20 de maio de 2024
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José Osmar

José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

24/06/2020 - 08h10

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José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

24/06/2020 - 08h10

O dilema da esquerda e a elite que se julga dona do Estado

Povo brasileiro carece de formação política e cultural permanente para compreender o que é, qual a importância e a quem deve pertencer o Estado Nacional.

 

Desde as “jornadas de junho” - os grandes protestos de rua ocorridos em São Paulo no mês de junho de 2013 - o Brasil vem expondo ao mundo as contradições de sua sociedade e as entranhas pútridas do seu sistema político em decomposição. A partir dali, teve início um processo contínuo de degradação dos políticos e da atividade política, lavando à eleição de Bolsonaro, com as consequências nefastas que estamos a vivenciar.

Por outro lado, a direita dá sinais de que não sabe o que fazer com os cinquenta e sete milhões de votos obtidos por Bolsonaro, talvez por não acreditar – no que está certa - que essa montanha de votos seja realmente votos de direita, e por isso tem preferido continuar onde sempre esteve: dando golpes, se apresentando como fiadora da ‘governabilidade’, esticando a corda autoritária para manter o controle político do País.

É fato que no período de 2003 a 2014 a esquerda e o centro, liderados pelo PT, abriram caminhos novos democráticos e adotaram políticas públicas mais favoráveis às camadas pobres da população. Porém, não há como fugir da realidade de que Lula e Dilma caíram ambos no conto do vigário de sempre, o velho e manjado estratagema da elite, de exigir concessões nada republicanas ao capital financeiro e às grandes corporações privadas como contrapartida pelo apoio à ‘governabilidade’. É como se dissesse – e é exatamente isso o que diz: “Tudo bem, vocês venceram, mas só governam se nós deixarmos”. 

Exatamente neste ponto o Partido dos Trabalhadores, o maior partido de massas da América Latina, cometeu seu maior erro. Ao fazer concessões à elite, a quem até então combatera encarniçadamente, deu um sinal trocado à sua base de apoio, deixando-a confusa e sem capacidade de reação. Fez como um motorista que liga a seta para a esquerda e em seguida dobra à direita.

Entretanto, o pior estava por vir. O PT manteve e até ampliou o modo tradicional e cultural da direita de fazer política, baseado em favores ao eleitor e na força do dinheiro das grandes corporações, quando deveria ter dado continuidade ao projeto que a levara ao poder: a conscientização política das massas.
 
Em nome de um republicanismo mal definido, Lula e Dilma, e um punhado de governadores e prefeitos da esquerda, foram longe demais nas concessões aos novos ‘aliados’, adversários declarados do projeto político que o Partido dos Trabalhadores representava.

Ao mesmo tempo em que executavam políticas públicas voltadas para a melhoria de vida das camadas mais carentes, os governos petistas se afastavam desse extrato social, por considerar, talvez, que apenas a inserção dos pobres na roda do consumo seria suficiente para lhes abrir o entendimento. Ledo engano! Ainda nos tempos da bonança (2009/2013) justamente as classes mais favorecidas já começavam a abandonar o projeto petista. Uns, por acharem que toda aquela fartura era uma obra de Deus em suas vidas (“Presente de Deus!” era uma frase comum nos vidros dos carros populares rodando pelo País); outros, por atribuírem a si próprios uma competência súbita, que, no entanto, não lhes tinha aflorado até 2003.
 
A esquerda não julgou necessário dizer ao povo que os únicos presentes que Deus nos dá são os dons e a salvação pela fé. O resto, precisamos buscar por nós mesmos (“Com o suor do teu rosto comerás o teu pão” - Gn. 3,19). Mas o êxito dessa busca árdua – devia lhes ter sido dito com veemência – é muito difícil quando não se tem um governo competente, preocupado com o bem-estar de todo o povo e não apenas com a proteção de uma classe privilegiada. Faltou claramente conscientizar as massas sobre como, de onde e porquê todo aquele espetáculo de desenvolvimento estava acontecendo no Brasil a partir de 2003.

Porém, o maior erro do PT foi adaptar-se a um sistema político controlado por uma elite que exerce o poder nas instituições desde o descobrimento do Brasil. Em dado momento, a adaptação era tão grande que as alianças, antes discutidas à exaustão e aprovadas com muito custo, passaram a ser naturais. Era como se o Partido se sentisse seguro em dirigir o País sob a ‘proteção’ da elite. No entanto, na primeira oportunidade que surgiu esses aliados de ocasião rasteiraram Dima e Lula (como já fizera com Getúlio, Juscelino e Jango), sem que houvesse qualquer reação da parte daqueles que mais se beneficiavam dos governos de esquerda.

Isso mostra que o povo brasileiro carece de formação política e cultural permanente. Formação que lhe propicie compreender o que é, qual a importância e a quem deve pertencer o Estado Nacional.

A elite brasileira é previsível: ameaçada em seus privilégios, recorre sempre a práticas autoritárias e excludentes. E nisto tem contado sempre com o amparo da mídia corporativa, dos militares, da maioria do Congresso, das instituições e – lástima das lástimas -, em grande medida, tem tido também o apoio do povo, culturalmente dependente e manipulado.

Essa nova realidade política e social, impensável há apenas cinco anos, impõe à esquerda e aos democratas em geral uma revisão urgente de sua atuação política, sob pena de a cada eleição verem diminuir sua relevância social, provavelmente até ao esgotamento completo de qualquer capacidade de reação. 

Do ponto de vista eleitoral, precisam ser mais seletivos em suas alianças. Quando no governo, devem promover e ampliar o controle social do Estado, de modo a prevenir retrocessos como este que hoje experimentamos.

Como dito, Bolsonaro é apenas um resultado previsível, se bem que piorado, daquilo que a elite fez contra Getúlio, Juscelino, Jango e Dilma. Quem apoia o ‘mito’ não tem escrúpulo em usurpar o poder, em retirar direitos do povo, em impor ditaduras.

Para reverter o seu desgaste e retornar ao governo pelo voto popular a esquerda terá de voltar às origens, ao trabalho de base, à formação cultural e política do povo, refazer e ampliar sua base social. No poder, precisa exercer novas práticas democráticas e administrativas; retomar a tarefa de promover cidadania, que não se restringe ao consumo; investir maciçamente em educação, que não se resume ao número de matrículas; adotar um programa nacional de segurança pública, que não se esgota na contratação de policiais e aquisição de armas; ser mais ético e transparente, o que reclama uma boa dose de altruísmo, mercadoria escassa no Brasil; exercer com desassombro o poder que o povo lhe outorgar, não permitindo, sem reação, que lhe seja usurpado, como foi em 2016.

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José Osmar Alves, promotor de justiça e Cantídio Filho, jornalista e professor da UFPI. 



 

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