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Domingo, 05 de maio de 2024
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José Osmar

José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

16/03/2022 - 10h22

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José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

16/03/2022 - 10h22

Vítima da financeirização e tutelada pela elite, a democracia ocidental está morrendo

 

Há consenso entre os historiadores de que a democracia como regime de governo tem origem na Grécia, por volta dos anos 500 antes de Cristo. A ideia é de Aristóteles, e o nome “democracia” é a junção das palavras gregas “demos” (povo) e “kratos” (poder). Ou seja: etimologicamente, democracia significa “poder do povo”. Mas Aristóteles não via o povo como a fonte única do poder, nem a democracia como o melhor regime de governo. Para ele, a democracia era apenas o regime mais próximo do governo ideal, porque estava convencido de que as decisões de um amplo grupo de indivíduos tendem a ser mais qualificadas do que a decisão de um só homem ou de um grupo restrito de homens.

Um homem um voto, e a maioria decide – postulado se aplica à democracia atual?

A concepção moderna de democracia data do século 18, fruto das revoluções burguesas que deram fim às monarquias absolutistas da Europa, de que são os exemplos mais conhecidos a revolução norteamericana de 1776 e a revolução francesa de 1789. Como se trataram de revoluções nas quais o povo (a burguesia) se envolveu diretamente, os vitoriosos reivindicaram o direito de governar ou de delegar o governo a alguém de sua confiança, com a alegação de que na verdade todo poder emanava do povo.

Naquele momento não havia dúvidas de que a democracia seria o sistema de governo que sucederia as monarquias derrubadas e de que o novo regime deveria se assentar em dois postulados básicos, os quais regeriam as eleições: 1) Todos os homens são iguais perante a lei, logo, cada homem tem direito a um voto de mesmo valor, e a vontade da maioria prevalece; e 2) Terminada a disputa, as facções aceitam e respeitam o resultado, portando-se nos limites das leis.

No entanto, nos tempos atuais a democracia ocidental está correndo um  sério risco, isto porque os seus dois postulados básicos – justamente aqueles que a legitimam enquanto sistema de governo – estão sendo ostensivamente atacados sob a invocação de uma estranha “liberdade democrática”.

Assim, se o meu partido não ganha a eleição eu contesto o resultado, com a disseminação de mentiras; e quando o outro me diz que o meu questionamento é ilegal, eu me “esqueço” dos limites que a democracia me impõe e apelo à liberdade de expressão; e quando o vencedor apela às instituições democráticas para manter o resultado da eleição, estas mesmas instituições dizem que talvez se trate de uma situação excepcional e, portanto, alguns procedimentos excepcionais provavelmente podem ser tomados (semelhanças com o Brasil não será mera coincidência).

Ora, mas todos sabem que os limites traçados pelas leis representam e asseguram a liberdade e a segurança de cada um e de todos. A liberdade, porém, não é plena, conhecendo seu limite individual na liberdade coletiva, pois se não houver limite na liberdade individual a democracia, que é a fonte da liberdade, ela própria se torna uma tirania. A liberdade sem limites transforma a democracia no individualismo, e o individualismo é contrário ao bem comum, que é o pressuposto legitimador do regime democrático, que por sua vez se legitima pelo respeito de todos ao resultado do processo eleitoral regular. Hoje parece não haver mais uma preocupação com esses detalhes “insignificantes”, os quais, no entanto, fizeram da democracia justamente o que ela é ou já foi.

Então, juntem-se todas essas idiossincrasias com a interferência do poder econômico no processo eleitoral (que corrompe a vontade dos eleitores e altera o postulado de que a cada homem corresponde um voto e a maioria decide) e temos a “sopa primordial” que conduzirá rapidamente a nação de uma “sacrossanta” democracia à anarquia mais violenta.

Ditas assim, essas palavras parecem risíveis, mas a verdade é que hoje as democracias ocidentais já não podem garantir que as maiorias realmente estão decidindo.

A erosão da democracia altera o equilíbrio social e ameaça o próprio sistema. O desgaste do sistema democrático tem permitido a expansão da extrema direita no mundo e, consequentemente, o enfraquecimento do Estado, que já não consegue exercer o papel de regular e mediar das relações sociais e econômicas.

A captura dos estados nacionais pelas forças do capitalismo globalizado, somada a ações populistas de governos ditos democráticos (de direita e de esquerda) têm criado no chamado “mundo livre” crises econômicas e de governabilidade recorrentes, cíclicas, propiciando o aumento vertiginoso da pobreza da maioria e a riqueza desmensurada de uns poucos, gerando desequilíbrios sociais que estão pondo em risco o próprio sistema democrático.

Contrariando as previsões dos que supunham que um novo normal surgiria alterando as relações econômicas e sociais para o bem, a pandemia do coronavírus na verdade aprofundou a desigualdade na distribuição da riqueza, agudizando ainda mais a crise da democracia.

A recente invasão da Ucrânia pela Rússia reacendeu no mundo o clima de guerra fria, resgatando estratégias de geopolítica do século XX, período histórico chamado de Era dos Extremos pelo pensador inglês Eric Hobsbawm. Um século marcado por duas guerras mundiais, ditaduras sanguinárias e a derrocada da União Soviética, que – goste-se ou não – com sua pregação de igualdade social acabava por ser um fator de equilíbrio das relações capitalistas, ao denunciar – ao menos em sua propaganda – os horríveis acúmulos de desigualdade e pobreza no autoproclamado “mundo livre”.

A utopia soviética de um mundo sem classes sociais, mesmo com seus desvios autoritários, de concentrar poder e forçar uma nova ordem social e econômica tendo como base a chamada ditadura do proletariado, conseguiu impor moralmente ao sistema capitalista a aceitação de organizações sindicais fortes, as quais, dada a força como representantes das classes trabalhadoras, mitigavam as desigualdades sociais. Isto propiciou, por exemplo, a organização dos estados de bem-estar social do pós-segunda guerra. Os capitalistas precisavam mostrar aos comunistas que só a democracia era capaz de criar um mundo livre, justo e feliz para o povo. O combate às desigualdades sociais era uma das principais armas propagandísticas dos países democráticos nos embates da guerra fria contra o comunismo.

Porém, com o fim da União Soviética na última década do Séc. XX, o capitalismo multinacional se livrou da competição comunista, estabelecendo-se na praça mundial sem concorrência, invadindo todos os recantos da terra com a sua força avassaladora, a tudo engolfando em suas ondas gigantes, ao ponto de testemunharmos bestificados o último líder da União Soviética, Mikhail Gorbarchev, em 1997 aparecer na TV fazendo um comercial da Pizza Hut americana instalada em Moscou.

Vem aí um acerto de contas?

O acúmulo das frustrações individuais das últimas três décadas no mundo capitalista ameaça se transformar numa avalanche coletiva. A hora do acerto de contas com o seu passado de guerras e aumento da miséria das multidões vem à tona nessas primeiras décadas do século XXI. Os embates entre democratas e governos autoritários foram retomados; grupos radicais de extrema direita voltam a empunhar bandeiras em oposição às instituições democráticas, às esquerdas e minorias em geral, que são desafiadas a se reaproximarem do povo para fortalecer o Estado-nação e tirá-lo do controle das forças do mercado e dessas lideranças autoritárias.

No Brasil, a eleição de um presidente de extrema direita é consequência de um modelo de democracia ainda embrionário. A despeito de já contamos quinhentos anos de história, somente em 1988 inauguramos um sistema democrático moderno que, no entanto, já nasceu sob o signo das frustrações coletivas das democracias antigas; sob o cansaço de um sistema elitista, corrupto e assistencial na forma de fazer política; de um país que não consolidou políticas de reparação social com os negros, os índios e os pobres de uma maneira geral; um país incapaz de julgar e punir os protagonistas de regimes autoritários, os responsáveis pelos golpes sistemáticos na democracia; os que, criminosamente, submetem os interesses da nação aos seus próprios interesses e aos das corporações  nacionais e estrangeiras.

Não há mais como esconder a vergonhosa realidade de que os países ricos do ocidente, aliados às elites dos países pobres e dos emergentes, vendem as “liberdades democráticas” como moedas de ouro do “mundo livre” e em nome disto barbarizam populações inteiras pela miséria, fazendo com que na prática o resultado de processos eleitorais sejam viciados pelo dinheiro e pela manipulação midiática. Nesse contexto, as chamadas instituições democráticas funcionam apenas como fontes “legitimadoras” de processos eleitorais ideologicamente fraudados. E quando isto não funciona e a democracia consegue um suspiro elegendo alguém que não pertence ao meio de sempre, o “mercado” aciona a mídia corporativa, esta, por sua vez, açula a massa desinformada e, então, em coluio com membros vendidos do parlamento e garantidos pelos órgãos da justiça pública, simplesmente dão um golpe.

Romper essa lógica perversa, que está matando a democracia, exige vigilância contínua das organizações da sociedade civil, especialmente nos aspectos éticos e morais daqueles que se propõem a administrar o Estado; requer das lideranças comprometidas com as causas da nação irem além da condição de simples lideranças populares para se tornarem verdadeiros heróis do povo, e isto exige disposição para grandes sacrifícios pessoais.

A história tem mostrado que a democracia só se consolida pela emancipação da sociedade, e isto só se dá pelo investimento massivo e contínuo em educação e cultura; pelo incentivo à participação do povo na governança pública; pela popularização do exercício dos direitos, mas também, e especialmente, pela popularização do cumprimento dos deveres; pela cobrança da contrapartida dos ricos para o financiamento do Estado; pelo resgate do espírito de solidariedade social que propiciou a formação do próprio estado moderno.

Sem isso, as sociedades ocidentais caminharão para um inexorável acerto de contas entre a democracia e os golpistas de toda ordem. O resultado desses embates é normalmente a guerra civil.

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José Osmar Alves, promotor de Justiça e Cantídio Filho, jornalista e professor mestre da Universidade Federal do Piauí.

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