

Hoje, acessei a Folha e deparei-me com a noticia: "Um atirador subiu em um telhado e apontou o rifle em direção aos participantes de um desfile que comemorava o 4 de julho, dia da independência dos Estados Unidos, em Highland Park, nos arredores de Chicago. De acordo com a policia, ao menos seis pessoas foram mortas a tiros, e outras 24 foram feridas". Até aí, nada de extraordinário: onde armas são vendidas sem qualquer controle, incidentes desse tipo ocorrem com incômoda frequência.
A notícia antes do café da manhã me fez lembrar de Malcolm Silverman, o único amigo norte-americano que tive. Sem xenofobia, não sinto necessidade de outros.
Malcolm era PhD em literatura e lecionava ficção brasileira na Universidade de San Diego, na Califórnia. Brasilianista, escreveu vários livro sobre ficcionistas brasileiros. Meu amigo era grandalhão, meio desengonçado, extremamente simples. Tudo o que conduzia era uma mochila com poucos pertences: uma calça e uma bermuda jeans, um par de tênis meio roto, duas camisetas Hering e dois pares de meia. Não sei se usava cuecas. Ele mesmo lavava tudo no banheiro. Imagine um brasileiro PhD indo aos Estados Unidos. Levaria criadagem, carruagem...
Um dia, em meados da década de 1980, sem aviso prévio, ele chegou à minha casa. Perguntou se eu poderia hospedá-lo por uns dias. Estava pesquisando os ficcionistas nordestinos. Ficou uma semana. Todos os dias, acordava cedo e me ajudava a cuidar do quintal. Certa manhã, perguntou se poderia assistir a uma aula minha. Levei-o ao Colégio das Irmãs onde, à época, só estudavam moças. Foi um frisson. Era uma aula sobre os poetas modernistas. Falei de Manuel Bandeira. Durante a aula, ele me pareceu um tantinho agastado. Na saída, foi curto e grosso: ”Você não lecionaria uma semana no meu país”. Rebati de bate-pronto: não se preocupe: não pretendo ir a seu país nem como turista. Ele tentou remendar a situação: “Por favor, Cineas, não quis ser desrespeitoso. Você é um excelente professor, se expressa com fluência e domina o assunto. O problema é ser generalista. Os americanos não suportam isso. Veja o meu caso: eu leciono ficção brasileira. Quando falo de Mário de Andrade, por exemplo, não trato do poeta; só do ficcionista. Aliás, eu não leio poesia de ninguém”. Azar seu, afirmei. Rimos um bocado.
No dia seguinte, ele voltou ao assunto: “ Tem mais uma coisa: nos Estados Unidos, você seria processado por assédio. Essa sua intimidade com as alunas é impensável por lá”. Não deixei barato: meu irmão, eu sei disso. Conheço, entre outras, aquela história do soldado americano que foi expulso do exército por ser gay. Li o desabafo dele: “Matei 14 homens em combate e fui condecorado por bravura; amei um e fui expulso do exército”. Ele afirmou: “Essa história não é verídica”. Verdadeira ou não, traduz bem a mentalidade de vocês: a Bíblia numa das mãos e um Colt 45 na outra. Fui adiante: Malcolm, perdoe-me a franqueza: vocês são uns neuróticos moralistas, doentes. Para encerrar a discussão, fomos ao centro da cidade tomar mate gelado com limão. Ele adorava.
Meu amigo gringo morreu em 2008. Às vezes, me lembro dele com uma pontinha de saudade. Era competente, honesto e tinha senso de humor.
*****
Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
A notícia antes do café da manhã me fez lembrar de Malcolm Silverman, o único amigo norte-americano que tive. Sem xenofobia, não sinto necessidade de outros.
Malcolm era PhD em literatura e lecionava ficção brasileira na Universidade de San Diego, na Califórnia. Brasilianista, escreveu vários livro sobre ficcionistas brasileiros. Meu amigo era grandalhão, meio desengonçado, extremamente simples. Tudo o que conduzia era uma mochila com poucos pertences: uma calça e uma bermuda jeans, um par de tênis meio roto, duas camisetas Hering e dois pares de meia. Não sei se usava cuecas. Ele mesmo lavava tudo no banheiro. Imagine um brasileiro PhD indo aos Estados Unidos. Levaria criadagem, carruagem...
Um dia, em meados da década de 1980, sem aviso prévio, ele chegou à minha casa. Perguntou se eu poderia hospedá-lo por uns dias. Estava pesquisando os ficcionistas nordestinos. Ficou uma semana. Todos os dias, acordava cedo e me ajudava a cuidar do quintal. Certa manhã, perguntou se poderia assistir a uma aula minha. Levei-o ao Colégio das Irmãs onde, à época, só estudavam moças. Foi um frisson. Era uma aula sobre os poetas modernistas. Falei de Manuel Bandeira. Durante a aula, ele me pareceu um tantinho agastado. Na saída, foi curto e grosso: ”Você não lecionaria uma semana no meu país”. Rebati de bate-pronto: não se preocupe: não pretendo ir a seu país nem como turista. Ele tentou remendar a situação: “Por favor, Cineas, não quis ser desrespeitoso. Você é um excelente professor, se expressa com fluência e domina o assunto. O problema é ser generalista. Os americanos não suportam isso. Veja o meu caso: eu leciono ficção brasileira. Quando falo de Mário de Andrade, por exemplo, não trato do poeta; só do ficcionista. Aliás, eu não leio poesia de ninguém”. Azar seu, afirmei. Rimos um bocado.
No dia seguinte, ele voltou ao assunto: “ Tem mais uma coisa: nos Estados Unidos, você seria processado por assédio. Essa sua intimidade com as alunas é impensável por lá”. Não deixei barato: meu irmão, eu sei disso. Conheço, entre outras, aquela história do soldado americano que foi expulso do exército por ser gay. Li o desabafo dele: “Matei 14 homens em combate e fui condecorado por bravura; amei um e fui expulso do exército”. Ele afirmou: “Essa história não é verídica”. Verdadeira ou não, traduz bem a mentalidade de vocês: a Bíblia numa das mãos e um Colt 45 na outra. Fui adiante: Malcolm, perdoe-me a franqueza: vocês são uns neuróticos moralistas, doentes. Para encerrar a discussão, fomos ao centro da cidade tomar mate gelado com limão. Ele adorava.
Meu amigo gringo morreu em 2008. Às vezes, me lembro dele com uma pontinha de saudade. Era competente, honesto e tinha senso de humor.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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