Atualmente, na História e nas Ciências Sociais, se utiliza muito o conceito de Modernidade cujos marcos são o capitalismo industrial (Inglaterra, 1750) e a Revolução Francesa (1789).
Evidentemente, as datas são referência para a consolidação de processos. O capitalismo industrial tem como antecedentes as viagens transoceânicas e o desenvolvimento da ciência, de Galileu a Newton, que possibilitaram o uso da tecnologia nos transportes e na produção fabril. E a proposta liberal-democrática da Revolução Francesa tem como antecedentes as cidades-repúblicas no final da Idade Média, o Renascimento e o grande movimento intelectual do Iluminismo (sec. XVIII).
A atual revolução da telemática produzirá uma nova etapa da Modernidade ou sua superação (pós-modernidade)? Ainda não dá para prever (ver últimos artigos e entrevistas de José Luís Fiori). Torço para que não sejam abandonadas algumas ideias-força do “imaginário” da Modernidade como Projeto Inacabado (Habermas): ciência-tecnologia, autonomia individual e cidadania, soberania popular e democracia (ver o livro do filósofo canadense Charles Taylor – Imaginários Sociais Modernos).
A civilização moderna, como todos os processos e estruturas histórico-sociais, é multidimensional. Desde a emergência do capitalismo industrial e sua expansão por todos os continentes com um novo colonialismo e o imperialismo, há uma hegemonia do modo de produção capitalista; essa foi a intuição de Marx e a razão de sua grande influência intelectual e política. Mas, hegemonia não é exclusividade. Pelo menos dois outros processos modernos têm sua lógica própria e mantêm uma tensão permanente com o capitalismo: a ciência e a democracia.
É verdade que cada multinacional cultiva a inovação: tem seus laboratórios, financia pesquisas universitárias ou compra patentes. Mas as universidades e os institutos de pesquisa mantêm sua autonomia e constituem uma comunidade acadêmica internacional.
O mesmo acontece com a democracia: a ideia de soberania popular está em todas as constituições dos estados nacionais; a eleição de representantes também. Governos autoritários ou mesmo totalitários não são apenas “superestruturas para a ditadura de classe”; são provocados também por fatores políticos e ideológicos.
Minha tese nesse artigo é essa: enquanto não se consolidar um novo modelo civilizatório – que não se baseie no produtivismo, consumismo, mercantilismo e mera instrumentalização-destruição da natureza – é a democracia que abre o caminho para enfrentar a crise do Mundo do Trabalho, ou melhor, da integração social e do bem estar dos trabalhadores e assalariados.
A Tecnologia, como aplicação da ciência na produção de bens e na oferta de serviços, continuará reduzindo os postos de trabalho. As constantes inovações, a diversificação de produtos e serviços (para seres humanos e cada vez mais para animais) e a “produção para a obsolescência” devem permanecer até a crise atingir o nível que exija uma mudança civilizatória, que a meu ver virá da crise ambiental.
A análise de experiências históricas e algumas elaborações teóricas, que têm como texto clássico o livro de T. H. Marshall – Cidadania, Classe Social e Status, apontam para a centralidade da cidadania como complemento à centralidade do trabalho. Cidadania vista como o status de todo membro de uma comunidade política democrática. Cidadania como direito a ter direitos (Arendt). Apesar da vulnerabilidade do que é “apenas” valor ou ideia-força, a evolução dos direitos civis para a conquista dos direitos políticos e dos direitos sociais tornou a cidadania (pelo exercício do voto ou pela participação ativa dos cidadãos e cidadãs em movimentos-entidades) o fundamento para o enfrentamento das insuficiências do mercado, bem como, para o equacionamento das demandas pelo direito à diversidade, cada vez mais fortes no mundo atual.
Evidentemente, o primeiro enfrentamento da crise da sociedade do trabalho é a redução da jornada de trabalho. Muitos países desenvolvidos têm implementado esse processo. Para o Brasil, é urgente a mudança do regime 6/1, sem redução do salário; pelo menos para o regime 5/2, como já funciona para algumas categorias de classe média. E a disputa pela participação justa dos salários na renda nacional continuará tendo seu papel. A ameaça é a “dualidade estrutural da sociedade” entre os integrados na economia informacional e os excluídos dela.
A universalização de serviços públicos gratuitos – educação, saúde, transporte urbano, etc. - considerados como “salário indireto” na teorização socialdemocrata, serão considerados cada vez mais como “direitos da cidadania”. O mesmo com os chamados direitos previdenciários; a ideia de “seguridade social” (que está em nossa Constituição Federal) já apela também para “direitos da cidadania”.
Isso implica numa visão bastante diferente sobre a atuação do Estado daqueles que o associam apenas a “equilíbrio fiscal”, sem questionar quem paga e para que são usados os recursos publicizados (impostos). Como Estado Democrático, este não pode ser apenas um “simples garantidor da ordem”. O Estado recebe a delegação de “compensar” - ou, quem sabe, no futuro “ultrapassar” - as insuficiências e iniquidades do mercado. Quanto por cento de sua receita total custa a folha de salário para os grandes bancos ou para as grandes operadoras telefônicas ou para as novatas bigtechs? Do outro lado, quanto por cento custa a folha salarial sobre o faturamento das indústrias médias e pequenas, das lojas do varejo e da maioria dos serviços?
O financiamento das políticas sociais não pode mais ter como base o financiamento compartilhado do capital e do trabalho/emprego. A tecnologia de base científica como força produtiva desequilibra a equação. Não é uma questão “ideológica de esquerda”; é uma questão de “exigência técnica ou sistêmica” da sociedade informacional com a automação e os robôs; é uma questão “até aritmética”.
O caminho pode ser a “renda básica cidadã”, como já se experimenta em alguns países mais ricos e onde a cultura da solidariedade (países escandinavos) ainda tem força. Lembremos o projeto de Eduardo Suplicy da renda mínima cidadã. Não se trata de “renda compensatória” onde ainda é necessária como a “Bolsa-Família” no Brasil. Trata-se da busca de uma alternativa de oportunidade e equidade de integração social.
Duas coisas me preocupam. Primeira: se os direitos políticos e sociais não têm como base os direitos civis (núcleo da cidadania), aparecem mais como benefícios do que como conquista (ver o conceito de “cidadania regulada” no livro Justiça e Cidadania de Wanderley Guilherme dos Santos). No Brasil, esse é um desafio enorme. A herança de colonizados e de escravocratas ainda bloqueia a convicção dos pobres de que eles têm direitos; e obscurece a visão dos ricos e instruídos em relação aos direitos dos outros.
Segunda: a transição será longa. As utopias capitalistas e socialistas sonhavam até com a idade do ócio. Administrar a economia não seria mais garantida pela dominação das pessoas; seria apenas administração das coisas (está no Manifesto do Partido Comunista de 1848). A ultrapassagem do produtivismo e do consumismo exige mais que a mudança do regime econômico-social. A mudança precisa ser civilizatória: novos valores, novo estilo de vida. Não é também a Inteligência Artificial que criará a nova civilização. Se a questão ambiental se apresentar como “colapso iminente” talvez toque a mente e o coração da Humanidade.
Os apelos e iniciativas do Papa Francisco e agora do Papa Leão XIV ajudam; Acho que nos 134 anos da Rerum Novarum de Leão XIII (15 de maio de 2026), Leão XIV publicará sua encíclica. Como a transição será longa e como no mundo todo ainda é imensa a desigualdade entre os que vivem do seu trabalho, há muito o que fazer. É como uma revolução molecular. Ou seja, vamos viver e lutar sempre.
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Antonio José Medeiros - Sociólogo, da Equipe do Instituto PRESENTE.
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