

Tendo como ponto de reflexão o livro recentemente lançado pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, A cruel pedagogia do vírus, vale ponderar sobre asfraturas expostas pelos atuais sistemas políticos, sociais e econômicos exponencialmente responsáveis pelas desigualdades do mundo em que vivemos.
Enquanto que para poucos privilegiados como nós, o isolamento social tem se mostrado como uma oportunidade e tem se transformado em promissor a partir das novas sociabilidades proporcionadas pelas tecnologias da informação e da comunicação no universo online, com novas oportunidades negociais, com tempo para repensar a vida. Para a grande maioria da população mundial, localizada no sul global ou na periferia das grandes megalópoles de países de capitalismo predatório como o nosso, a situação é bem diversa, visto que muitos não possuem sequer o que comer, não possuem água potável para beber, não são beneficiados com sistemas de saneamento, precisam trabalhar a cada dia e encontrar modos de sobreviver.
Os objetivos do milênio traçados há cerca de 20 anos pela ONU-Organização das Nações Unidas, inicialmente,como 8 objetivos, e, posteriormente, revistos em 2015 e alargados para 17, parecem ter retrocedido, frente a ação predatória dos governos conservadores e de extrema direita que estão governando vários países no mundo, inclusive, no nosso. Os objetivos são: 1. Erradicação da pobreza, 2. Fome zero e agricultura sustentável, 3. Saúde e bem-estar, 4. Educação de qualidade, 5. Igualdade de gênero, 6. Água potável e saneamento, 7. Energia limpa e acessível, 8. Trabalho decente e crescimento econômico, 9. Indústria, inovação e infraestrutura, 10. Redução das desigualdades, 11.Cidades e comunidades sustentáveis, 12.Consumo e produção responsáveis, 13.Ação contra a mudança global do clima, 14.Vida na água, 15.Vida terrestre, 16.Paz, justiça e instituições eficazes e 17. Parcerias e meios de implementação.
Em nosso país, os objetivos de desenvolvimento sustentável propostos e acima elencados e para os quais houve trabalho intenso nas duas décadas anteriores, foram tomados como objetivos a serem combatidos. No atual governo, os orçamentos para saúde, educação, educação superior, ciência e tecnologia, preservação do meio-ambiente vem sofrendo abalos consideráveis, configurando um dos motivos pelos quais o Brasil que já não possuía sistemas de saúde e educação estruturados a contento, passou a viver um sucateamento dessas áreas, assim como, em ciência e tecnologia. Com a pandemia tudo teve que ser retomado na última hora e sem investimentos em montantes capazes de impulsionar oque já estava em andamento, muito menos o volume de novas pesquisas que estamos vivenciando.
Esse complexo contexto econômico de desemparo dos mais vulneráveis em prol de um projeto neoliberal pautado na volatibilidade dos investimentos e namaximização dos lucros das grandes corporações, assim como, na distinção social, compõe um projeto de aprofundamento das desigualdades sem amparo dos mais vulneráveis, agora também desprotegidos contra o coronavírus.
Boaventura de Sousa Santos em seu livro chama a atenção no capítulo denominado A sul da quarentena emque toma o sul como espaço-tempo político, social e cultural e como metáfora do sofrimento humano incomensurável ao qual estão expostos diversos grupos humanos, dos quais ele menciona e analisa a situação de alguns
Sobre as mulheres Boaventura pontua: “ Postas em quarentena, poderia imaginar-se que havendo mais braços em casa as tarefas poderiam ser mais distribuídas. Suspeito que assim não será, em face do machismo que impera e quiçá se reforça em momentos de crise e de confinamento familiar. O aumento do número de divórcios em algumas cidades chinesas durante a quarentena pode ser um indicador do que acabo de dizer. Por outro lado, é sabido que a violência contra as mulheres tende a aumentar em tempos de guerra e de crise – e tem aumentado agora. Uma boa parte dessa violência ocorre no espaço doméstico. O confinamento das famílias em espaços exíguos e sem saída pode oferecer mais oportunidades para o exercício da violência contra as mulheres. O jornal francês Le Figaro noticiava em 26 de março, com base em informações do Ministério do Interior, que a violência conjugal tinha aumentado 36% em Paris na semana anterior”. No Brasil a situação das mulheres em quarenta tem levado ao crescimento dos casos de feminicídios, estupros, violência física e demais tipos de violência. A vulnerabilidade a que as mulheres estão expostas por conta de uma cultura do patriarcado, do machismo exacerbado em nosso país, tem levado a morte. Muitas mulheres não tem escolha entre contrair a doença ou morrer pelas mãos do agressor com quem divide a habitação.
Já acerca dos trabalhadores de rua, Boaventura assinala que esses “ .... são um grupo específico dos trabalhadores precários. Os vendedores ambulantes, para quem o “negócio”, isto é, a subsistência, depende exclusivamente da rua, de quem nela passa e de sua decisão, sempre imprevisível para o vendedor, de parar e comprar alguma coisa. O impedimento de trabalhar para os que vendem nos mercados informais das grandes urbes significa que potencialmente milhões de pessoas não terão dinheiro sequer para acorrer às unidades de saúde se caírem doentes ou para comprar desinfetante para as mãos e sabão. Quem tem fome não pode ter a veleidade de comprar sabão e água a preços que começam a sofrer com a especulação.
Sobre os sem-teto, o sociólogo se pergunta: Como será a quarentena de quem não tem casa? Os sem-teto que passam as noites nos viadutos, nas estações de metrô ou de ônibus abandonadas, nos túneis de águas pluviais ou de esgoto em tantas cidades do mundo. Nos EUA chamam-lhes os tunnel people. Como será a quarentena nos túneis? Não terão passado toda a vida em quarentena? Sentir-seão mais livres do que aqueles que são agora obrigados a viver em casa? Verão na quarentena uma forma de justiça social?
Boaventura fala ainda sobre os idosos, os refugiados e os deficientes, pontuando a vulnerabilidade e muitas vezes a impossibilidade de realizar escolhas entre se expor ao vírus e se isolar para se proteger, em face das condições em que vivem.
Por outro lado, Boaventura ainda elenca as lições do vírus. Em primeiro lugar, fala do tempo midiático e do condicionamento que este impõe ao modo como as sociedades percebem os riscos que correm. Em segundo lugar, afirma que as pandemias não matam tão indiscriminadamente como se supõe, visto que os vulneráveis já elencados não possuem as mesmas condições de proteção contra o vírus que as condições da classe média, dos ricos, etc., que eventualmente podem contrair por ações de exposição intencional ou não. Nesse ponto Boaventura é enfático ao afirmar que em muitos países parece que os governos estão apostando em um darwinismo social, ao que acrescento: ou mesmo, em um processo em certa medida, eugênico.
A terceira lição alerta para o fato de que o capitalismo enquanto modelo social não possui futuro, sobretudo, o neoliberalismo combinado com o domínio do capital financeiro, para Boaventura, “o capitalismo poderá subsistir como um dos modelos econômicos de produção, distribuição e consumo, mas não como o único- e muito menos como o que dita a lógica da ação do Estado e da sociedade”, visto que impõe modelos sociais de exclusão e de distinção e não atende às populações e aos que mais necessitam, está focado no lucro e na percepção individual e não coletiva. Além dessas lições o autor trabalha a questão da extrema direita como desacreditada, que espero, realmente venha a se confirmar.
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