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Sabado, 04 de maio de 2024
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cantidiosfilho@gmail.com

23/04/2024 - 09h37

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23/04/2024 - 09h37

O Encontro com o Gauche

 

Carlos Drummond de Andrade, escritor mineiro

 Carlos Drummond de Andrade, escritor mineiro

Num final de tarde, antes do início das aulas, entrei na biblioteca do Liceu. Meio desarrumada, tinha um acervo razoável. Aleatoriamente, peguei um livro que estava sobre o balcão. Língua Portuguesa, de Wálter Wey. A capa era um convite a não ler. Abri numa página qualquer e deparei-me com o “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade. Comecei a ler: “Quando nasci, um anjo torto/desses que vivem nas sombras/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Parei, comecei novamente e, à proporção que avançava, mais se acentuava em mim a sensação de estranhamento. Afeito à musicalidade do cordel, com versos heptassílabos, e aos sonetos em versos decassílabos, não podia entender aquele texto duro, quase prosaico, com uma ironia que, à época, me escapava. Procurei outros poemas do Drummond no livro, não encontrei. O texto ficou martelando meu juízo por vários dias. Que raio de poema era aquele que me instigava tanto?

Conversei sobre o assunto com um colega e ele me disse: “É um desses modernistas malucos. Você precisa ler "No meio do caminho", um trem sem pé e nem cabeça”. Resolvi procurar o tal poema. Quando o li, em meios as repetições, um verso cintilante: “nunca esquecerei daquele fato na /vida de minhas retinas tão fatigadas”. Pronto: eu agora só queria ler aquele poeta cujo rosto, enorme, parecia desproporcional ao restante do corpo. Tempos depois, fiquei sabendo que o escritor O. G. Rego de Carvalho, quando aluno do Liceu, por pouco não foi expulso ao sair em defesa de Drummond numa aula em que o professor de português espinafrava o poeta mineiro. De vingança, O. G. procurou um dos sonetos menos conhecidos do Bilac e levou para o dito professor analisar. Afirmou ser ele o autor do poema. O professor não se fez de rogado: apontou erros de métrica, de rima, de pontuação... Com um sorriso de vitória nos lábios, o futuro romancista teria afirmado: “O Senhor não sabe é de nada”. Mais tarde, este velho professor participou de uma campanha sórdida movida por alguns intelectuais do Piauí contra o autor de Rio Subterrâneo.

Muito tempo depois, uma moça linda de viver, me deu de presente o livro Reunião, uma antologia com dez livros do Drummond. Nunca me esquecerei deste fato na vida das minhas retinas tão sedentas de beleza...

Uma tarde, na companhia de Salgado Maranhão e Moisés, avistei o poeta em Ipanema. Trajando um terno azul-calcinha, apressadinho, o poeta seguia  impávido. Os companheiros quiseram parar para cumprimentar Drummond. Como eu havia lido "Apelo aos meus dessemelhantes em favor da paz", afirmei: deixa o poeta em paz. Pode estar ruminando algum poema novo. Meninos, eu vi o Gauche. Não é pouco.

*****
Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 
 

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