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Quarta-feira, 30 de abril de 2025
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cantidiosfilho@gmail.com

28/04/2025 - 07h37

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28/04/2025 - 07h37

O Fascínio das Palavras

 

"Já na cidade, ouvi, num sermão do padre Nestor, a palavra Cafarnaum".

 "Já na cidade, ouvi, num sermão do padre Nestor, a palavra Cafarnaum".

Onde nasci, sertão do Caracol, falava-se pouco. Não por timidez ou recato, mas por pobreza vocabular. O lugar era longe de quase tudo; os moradores, poucos e as conversas, as mesmas de sempre.  Todas as falas gravitavam em torno de três substantivos:  terra, sol e chuva. Mais tarde, muito mais tarde, descobri em João Cabral que o sertanejo fala pouco porque “as palavras de pedra ulceram a boca” ...
 
Ainda me lembro da primeira palavra diferente que ouvi: saracura. Trata-se uma ave rara naquele sertão onde chovia pouco. Uma manhã qualquer, ouviu-se o canto da ave. O irmão industrioso, armada de uma “bate-bucha”, resolveu caçá-la. Por sorte, não a encontrou. Guardei a palavra.
 
Já na cidade, ouvi, num sermão do padre Nestor, a palavra Cafarnaum. Segundo o vigário, Jesus teria morado lá. Decidi na hora que precisava conhecer o lugar. Na saída da igreja, perguntei a dona Purcina onde ficava Cafarnaum. Ela me olhou espantada, sorriu e fez um gesto vago com a mão. Entendi: “muito além do nosso alcance”.
 
Quando cursava a terceira série do ginasial, numa seleta organizada por Aída Costa, deparei-me com esta preciosidade: “Hão de chorar por ela os cinamomos”, um verso de Alphonsus de Guimaraens. Por causa da palavra cinamomo, passei a amar o velho poeta simbolista. Muito mais tarde, quando vi as tais flores, muito do encanto se perdeu.
 
Com Bandeira, descobri Pasárgada, uma cidade Persa, onde o “tísico profissional” podia quase tudo, inclusive montar em burro brado, subir em pau de sebo e amar as prostitutas mais bonitas...
 
Um dia, por acaso, descobri a Birmânia. Um país minúsculo nos confins da Ásia com inumeráveis templos budistas. Um bom lugar para visitar. Na verdade, pouco ou nada eu sabia dos lugares. O que me fascinava e ainda fascina são os nomes.
 
Dia desses, parei para revisitar os lugares com nomes mágicos. Só então, descobri minha atração pelo inviável. De Cafarnaum sobraram as ruínas da casa de Pedro e de uma sinagoga. De Pasárgada, as ruínas do mausoléu a de Ciro... Quanto à Birmânia, tornou-se Myanmar, um nome idiota. Não bastasse isso, o país vive mergulhado em ditaduras intermináveis. 
 
Bem, para não ficar de mãos vazia, decidi  visitar dois lugarejos no sertão do Piauí: Sicumbido e Sulidão, ambos nas proximidades de São Braz do Piauí. Duas palavras absolutamente fascinantes.  Assim, em vez de atravessar o mar para ver ruínas, visitarei os dois povoados encravados no coração do semiárido. O sábio Borges afirmava: “A palavra é o arquétipo da coisa”.  Se é assim, vamos ver o que se esconde no bojo de Sicumbido e Sulidão.  Prometo contar tudo a vocês. Até lá.
                                          
*Há dois anos, visitei os lugarejos. Sulidão faz jus ao nome: uma escolinha abandonada e um punhado de casinhas esquecidas no meio do nada.

Sicumbido é a expressão perfeita do nada: nem casas, nem escola, nem igreja... Nada de nada. É uma estradinha que leva a lugar nenhum. Antigamente, ali se plantava mandioca; hoje, nem isso. Tudo que existe lá é um poço profundo cuja água não serve a ninguém porque a bomba está quebrada desde sempre.

Pensando bem: o que diabo fui fazer naqueles lugares? Agora já não me resta nem a magia dos nomes.

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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 

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