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Sabado, 27 de abril de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

19/08/2022 - 08h44

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Ana Regina Rêgo

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19/08/2022 - 08h44

O DIABO NA ÁGUA BENTA: o ódio e a “guerra santa” em pauta

 

No Brasil de 2022, em período eleitoral, temos acompanhado, a partir dos canais da Rede Nacional de Combate à desinformação (https://rncd.org/), uma profusão de fake News, cujo fluxo de distribuição/fruição tem se dado, sobretudo, pelas redes sociais e aplicativos de mensagem. Como é de conhecimento público e notadamente apontado por inúmeras pesquisas já mencionadas neste espaço de jornalismo opinativo, há um rio de desinformação que se acopla ao discurso de ódio e que corre em todos os canais, das plataformas da Meta (Facebook e Instagram), às plataformas da Alphabet, sobretudo, YouTube, considerado no Brasil o celeiro de desinformação de onde os vídeos correm para todos os demais espaços. Mais recentemente a desinformação vem se infiltrando com grande força em aplicativos de outros domínios como TikTok e Telegram. No TikTok o próprio aplicativo disponibiliza uma ferramenta que permite mudar o áudio, transformando o vídeo, cada vez mais, em desinformação e ainda possibilita que tal vídeo circule para além de seus muros. Dentro de seus limites, o TikTok sinaliza que o vídeo foi adulterado, fora de seus limites tal informação não mais existe. No Telegram o cenário é bem complicado, por lá canais declaradamente neonazistas se instalaram e estão ganhando adeptos a passos largos. No Telegram a desinformação eleitoral também corre solta, isto acontece, muito embora a plataforma, após as ameaças do STF, tenha feito acordo com as instituições brasileiras para coibir tal prática desinformativa no período eleitoral. No TikTok, matéria da Revista Piauí disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/eleicoes-2022/desinformacao-em-busca-de-votos , afirma que somente nos últimos quatro meses, o Comprova verificou sete vídeos em que a estratégia foi utilizada, a partir de diferentes técnicas (que vão das temidas deepfakes ao recurso de dublagens do TikTok), mas todos com um objetivo em comum: criar desinformação no período eleitoral atacando Lula ou defendendo o atual presidente Jair Bolsonaro (PL). 
 
É, portanto, nesse cenário complicado de pleito eleitoral e de um crescente mercado da desinformação que denomino de construção intencional da ignorância e de um acoplamento cada vez maior da desinformação ao ódio que estou plagiando não só o título do livro do Robert Darnton, como o título do próprio Libelo francês, considerado um dos mais virulentos do século XVIII e que teria ajudado a fomentar as críticas que levaram as grandes crises e finalmente à Revolução francesa.  Como bem diz Darnton, calúnias e difamação sempre foram um negócio sórdido e em muitos sentidos lucrativo, principalmente, porque o objetivo era sempre descredibilizar algo ou alguém, em prol de outrem que almejava o poder.
 
No início deste mês, a Primeira-Dama, Michelle Bolsonaro, agora se portando como pastora em campanha eleitoral nos domínios que considera seu rebanho sagrado, afirmou que o Palácio do Planalto até pouco tempo “era consagrado a demônios” e que agora estaria “consagrado ao Senhor”.  Antes já havia compartilhado uma publicação da vereadora de SP, Sonaira Fernandes, atacando Lula e as religiões de matrizes africanas, afirmando que o ex-Presidente teria vendido sua alma para vencer as atuais eleições.
A partir das falas da Primeira-Dama foram construídas inúmeras mensagens com fake News e discurso de ódio destinadas ao candidato que lidera as pesquisas, Lula, assim como, com suspeição de caráter moral e com tempero anticomunista, acusando a toda esquerda de perseguir as igrejas cristãs.
 
A “guerra santa” foi novamente declarada oficialmente em um Estado que deveria ser completamente laico. É certo que falta conhecimento da história das religiões para o que o livro de Mircea Eliade pode ajudar muito, ou sobre a própria história do Cristianismo e de todas as barbáries que foram cometidas em nome de Jesus ao longo da história, mas na verdade, em nome e por delegação do poder. O livro de Geoffrey Blainey pode ajudar com o Cristianismo.
 
Contudo, há que se ressaltar que além do trabalho em prol da manutenção da própria ignorância, os que hoje desejam conquistar almas através das guerras santas declaradas, imputando ao pensamento de esquerda atrocidades contra igrejas na atualidade no Brasil, tem sim, o intuito de fomentar mais e mais o ódio, trabalhando estratégias da arte da guerra. Dividir para conquistar com facilidade.
 
A Frente Inter-religiosa Dom Paulo Evaristo Arns publicou uma nota de repúdio às declarações da Primeira-Dama. Na nota a Frente afirma que a fala de Michele Bolsonaro dá ênfase a uma “antiga prática excludente, beligerante e preconceituosa”, com o intuito de demonizar o inimigo, estimulando a violência. Portanto, “um maniqueísmo fundamentalista e perigoso, característico de regimes fascistas”.
 
A nota destaca que essa mesma estratégia foi usada em diversos momentos da história e que serviu para legitimar perseguições religiosas e que vieram a promover guerras e milhares e milhares de mortes. “O resultado dessas declarações não pode ser outro senão fomentar a desagregação da sociedade através do medo e colocar em risco a luta internacional de mais de um século por diálogo e cooperação inter-religiosa e ecumênica”.
 
A “guerra santa” se apresenta para a sociedade brasileira como uma estratégia de marketing político eleitoral pautada completamente em desinformação histórica, social e coletiva, ativando o desentendimento e chegando a milhares e milhares de lares brasileiros, levando ao povo, principalmente, o mais simples que não tem acesso a informação de qualidade ou por ausência das mídias jornalísticas em sua dieta diária, ou por suspeição levantada pelos pastores e padres que guiam seus fiéis.
 
O Diabo na água benta, como dito, foi um dos libelos mais populares de sua época. Publicado em forma de brochura/livro, apresentava uma narrativa irônica do labirinto em que se perderam os agentes franceses que atravessaram o Canal da Mancha e se infiltraram nos becos londrinos dispostos a desmontar a indústria editorial que ameaçava os fundamentos da monarquia francesa. O livro em forma de libelo, destaca que embora os policiais tivessem sucesso em intimidar um ou outro autor ou em suprimir algumas tiragens, estes eram geralmente ludibriados, e muitos se venderam, passaram a fazer jogo duplo e contribuíram para a multiplicação das denúncias que, segundo Robert Darnton, tiveram um papel nada desprezível na mobilização popular que desencadeou a Revolução. Darnton também afirma que no libelo, algumas personagens eram difamadas gratuitamente, sem qualquer vínculo com os princípios elevados que a obra dizia defender.
 
Guardadas as proporções narrativas, épicas, históricas e contextuais. A metáfora, o diabo na água benta,  é muito boa para o atual cenário de uso da fé para legitimar contra valores históricos e que envolvem a própria fé Cristã. Hoje, no Brasil, e, em nome de Jesus, se defende a tortura, o ódio contra os que seguem os princípios de esquerda e desejam um mundo mais igualitário. Em nome de Jesus se defende o patriarcado, subjugando as mulheres a uma condição de submissão que tem alimentado o sistema capitalista, mesmo lócus do racismo estrutural. Hoje em nome de Jesus a homofobia impera e a cura é pregada em Igrejas neopentecostais e até em consultórios psicológicos. Hoje em nome de Jesus se prega a intolerância religiosa. Então dizer NÃO a falsa e manipulatória “guerra santa”, se faz primordial.
 
 
 

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